O que fez a Região Militar do Norte no dia 25 de Novembro de 1975?
ARegião Militar do Norte (RMN), toda sob controlo, aguardava serenamente que alguma ordem lhe fosse dada, pelo verdadeiro comandante do 25 de Novembro, general Costa Gomes, para resolver qualquer problema no país, onde se tornasse necessário, em especial na região de Lisboa.A situação inicial no Sul estava de tal forma descontrolada que se temia fosse desencadeada, a partir dali, uma guerra civil no país. Entretanto, surgiu um misterioso grupo, auto-intitulado "Comando da Amadora" - onde se dizia estar Tomé Pinto, Eanes, Monteiro Pereira e alguns outros -, que não conseguiu um mínimo de disciplina nas unidades que estariam na sua dependência.
Na RMN foi-se trabalhando desde meados de Setembro no sentido de pôr ordem onde a desordem imperava, o que acontecia praticamente em toda a região. Porém, em 25 de Novembro, tudo estava já sob controlo. No quartel-general tinha sido encerrada uma das repartições (a 2.ª), que mais não era que uma "antena" da tristemente célebre 5.ª Divisão de Lisboa. Reactivada posteriormente, ficou a chefiá-la, por escolha, o coronel Azevedo Dias; tinham sido contactados muitos dos nossos melhores cérebros que, após o 25 de Abril, haviam fugido para o estrangeiro, no sentido de regressarem, pois o Comando da RMN garantia a sua segurança; impediram-se as infelizmente habituais prisões sem culpa formada, correntes na época, contra todos aqueles que o PC apelidava de "fascistas" e "reaccionários"; tinha-se resolvido o difícil problema da "unidade revolucionária de Chaves", ponta de lança do Partido Comunista; o problema do CICAP tinha sido resolvido. Foi mandado encerrar por mim (em Lisboa souberam pela comunicação social), tendo eu também informado os portugueses que as suas instalações iam ser destinadas aos ministérios da Educação e da Saúde. Assim se fez. Nisto tenho muito orgulho! A revolta do RASP foi dominada no momento oportuno. A unidade foi reocupada e disciplinada; tinha-se conseguido, com a colaboração dos partidos políticos democráticos, organizar uma gigantesca manifestação no Porto, de apoio ao primeiro-ministro, Pinheiro de Azevedo.
Ninguém imagina a dificuldade que tive para chegar à fala com o primeiro-ministro! Os seus colaboradores mais próximos tudo fizeram para o impedir. A determinada altura, tive de perguntar ao comandante P. Neves, do gabinete, se queria que o comandante da RMN tivesse de se deslocar a Lisboa para trazer o almirante Pinheiro de Azevedo ao Porto! (O almirante disse-me depois que os seus colaboradores mais próximos tinham tentado, até à meia-noite da véspera da vinda, dissuadi-lo de aceitar a manifestação preparada no Porto.)
Como é sabido, esta manifestação teve um impacto político positivo muito grande. O Comando da RMN tinha feito abortar a 3.ª manifestação SUV, se bem me lembro no dia 17 de Novembro; tinha-se procedido à montagem de um posto de rádio no meu gabinete, em colaboração com a Força Aérea, no sentido de se conseguir uma ligação directa e permanente com a Base de Cortegaça, onde se encontrava a maior parte dos aviões da nossa Força Aérea; foi dada a maior atenção às características do Norte de Portugal e das suas gentes, os seus sentimentos humanos, de generosidade, de solidariedade, ambicionando uma democracia verdadeira.
A situação em Lisboa era de tal modo grave e insegura que, logo após o 25 de Novembro, alguém desse tal "Comando" me telefonou, a pedir que eu aceitasse "guardar" na minha região os militares que haviam sido presos (Tomé, A. Metelo, etc.), pois em Lisboa não havia segurança para o efeito. Eu disse que sim. E eles vieram. Entretanto, lá para baixo, a situação foi melhorando, desde que Vasco Lourenço havia assumido as funções de governador militar de Lisboa.
Assim, é de espantar que Ramalho Eanes e os seus pares não tivessem conseguido um mínimo de disciplina nas unidades que deles dependiam! Naturalmente, o Regimento de Comandos era uma excepção, porque tinha à sua frente um militar, este sim, de grande valor: o coronel Jaime Neves, a quem o povo português muito ficou a dever. Lá, quem mandava era ele.
A minha surpresa foi grande ao ver desfilar na Avenida da Boavista, frente ao Hospital Militar do Porto, onde me encontrava em 1976, uma Força Militar do Regimento de Comandos, encabeçada e chefiada pelo coronel Jaime Neves.
Transcrevo as palavras de Jaime Neves sobre este desfile (no livro O Norte e o 25 de Novembro, do jornalista Silva Tavares): "A iniciativa foi minha, que depois transmiti às companhias. O pessoal veio para o Norte, e já sabia ao que vinha. Fiz uma reunião de oficiais, onde manifestei a intenção de prestar homenagem ao nosso brigadeiro - foi ele que nos incentivou, foi ele que nos deu muito apoio naquelas horas decisivas... Eram para aí 1.200 homens, umas 70 ou 80 Chaimites, 123 jipes com canhão de recuo, tudo impecavelmente alinhado... Eram umas 9, 9,30 da manhã, estava a chover... Foi só passar e fazer a continência...".
Julgo também oportuno fazer realçar a actuação de Vasco Lourenço, notável desde o 25 de Abril, afrontando corajosamente em manifestações várias, comícios, plenários, insultos de toda a ordem, mostrando exemplar firmeza em todas as circunstâncias. Também nessa ocasião recebi um telefonema desse chamado "Comando da Amadora" (julgo ter sido Vítor Alves, não tenho a certeza), a pedir-me para eu enviar, com muita urgência, para Lisboa (pois "estamos muito aflitos"), três batalhões.
Eu acedi, admitindo que o pedido tinha a concordância do general Costa Gomes, mas disse que iam seguir imediatamente, não três batalhões, mas três companhias, consideradas pelo povo de Lisboa como seus salvadores. Foram fortemente ovacionadas quando das suas deslocações pelas ruas da cidade. Este "Comando da Amadora" andou muitas vezes à deriva, ao sabor dos acontecimentos e dos conselhos de uns tantos políticos, sem tomar as decisões de fundo que se impunham, mas de que o tenente-coronel Ramalho Eanes e os outros oficiais não eram capazes.
Ao falar no dia 21 de Novembro deste ano no Canal 2, o general Tomé Pinto, quando referiu a Força Aérea, esqueceu-se de dizer que tinha sido o general Lemos Ferreira que, no meu gabinete, durante uma noite inteira, comigo a seu lado, tentou desmobilizar os pára-quedistas que ocupavam indevidamente as bases, conversando com os responsáveis, "amolecendo-os", fazendo-lhes ver os erros que cometiam.
No dia 25, de manhã, o general Lemos Ferreira fez a sua apresentação no comando da minha região militar, sem guia de marcha. Veio para o Porto depois de ter conversado com vários oficiais da Força Aérea, só não o fazendo com o chefe do Estado-Maior, general Morais e Silva, por impossibilidade de contacto com este. Recebi-o no meu gabinete mesmo sem guia de marcha, com um grande abraço, e disse-lhe: "Vamos trabalhar juntos." De imediato se fez o seguinte.
1. Puseram-se no ar 40 aviões T-6, que sobrevoaram as principais cidades do país.
2. Em ligação com o tenente-coronel Ferreira da Cunha, na Presidência da República, cortou-se a emissão da RTP em Lisboa, transferindo-a para o Porto (não foi actuação do "Comando da Amadora", como o general Tomé Pinto quis fazer crer). O tenente-coronel Ferreira da Cunha era secretário de Estado da Comunicação Social e, com o Governo em greve, foi-se "implantar" no Palácio de Belém. A sua acção fez-se logo sentir.
Foi ele que me telefonou para o meu Gabinete, pedindo-me que eu neutralizasse, durante algumas horas, o responsável da Delegação do Norte do Ministério da Comunicação Social, que não oferecia confiança, a fim de que se efectuassem os procedimentos técnicos, que levassem à mudança da emissão de Lisboa para o Porto. Outro exemplo da sua acção deve ser referido. Em determinado momento, o Almirante Rosa Coutinho, fazendo o jogo do inimigo, procurou lançar a confusão, ao tentar na Sala dos Telexes do Palácio Foz, divulgar uma noticia falsa (que os fuzileiros teriam ocupado a "Ponte 25 de Abril). O Presidente da República chamou Ferreira da Cunha para dar satisfação à queixa de Rosa Coutinho que fazia a acusação de estar a haver "censura". Ferreira da Cunha, calmamente, disse-lhe que essa informação não era verdadeira, sugerindo que o general Costa Gomes, ele próprio, e o almirante se deslocassem ao local de helicóptero. A sugestão foi aceite. Quando lá chegaram, verificaram que não havia fuzileiros. A ponte não estava ocupada.
É justo dizê-lo: o tenente-coronel Ferreira da Cunha é um homem superiormente inteligente, de grande carácter, humilde, inexcedível em patriotismo e espírito de missão, cuja acção junto do Presidente da República foi de importância capital. É um militar a quem o país também muito ficou a dever.
3. Fizemos um comunicado, com a colaboração do coronel Câmara, dizendo aos portugueses que a nossa Força Aérea estava com a RMN e com o Presidente da República.
4. Quando, já tarde, se soube que uma multidão cercava o Quartel de Setúbal, já de noite se fizeram sair dois jactos T-37, desarmados, que picaram sobre os manifestantes, que num repente debandaram.
5. A determinado momento, chamei ao quartel-general o comandante da Defesa Marítima do Norte, para saber qual a "cor" do seu pessoal, o seu estado de espírito, etc. O comandante mostrou-se confuso e ambíguo, tendo eu então terminado a conversa, dizendo-lhe: "Tenho muito que fazer, mas entenda-se aí com o sr. general Lemos Ferreira, que ele lhe dirá o que combinámos. Mas uma coisa é certa, os seus navios estão proibidos de sair do Porto."
Dada a informação que havia, de que os fuzileiros do Vale do Zebro se preparavam para vir para o Norte e atacar a Base de Cortegaça, foi necessário imobilizar os navios de guerra estacionados aqui na zona e actuar imediatamente: a) Combinei com Lemos Ferreira que os aviões de Cortegaça seriam carregados com bombas e afundariam os barcos dos fuzileiros que passassem o paralelo de Peniche; b) Foram mobilizadas traineiras, que se manteriam ao largo, para, através da rádio, nos informarem do perigo. Nesta acção teve papel relevante o bem conhecido e respeitado no meio piscatório Mestre Caravela; c) Informou-se o Comando Superior da marinha da possibilidade de os barcos dos fuzileiros serem afundados. E os fuzileiros não apareceram!
Também não foi o "Comando da Amadora", ao saber-se deste possível ataque dos fuzileiros, quem teve qualquer intervenção. Nem sequer me avisaram dessa possível "invasão" do Norte! (Talvez não estivessem a par do problema...) O "Comando da Amadora", na realidade, foi um "bluff"!! Passaram o tempo a fazer planos, segundo se depreende de afirmações recentes de oficiais desse "Comando" e, segundo Ramalho Eanes, estavam mais preocupados com a política do que com a parte militar. Para finalizar, deixo esta pergunta: passados todos este anos, por que é que nenhum dos oficiais deste propalado "Comando da Amadora" (hoje, todos ou quase todos os oficiais são generais), e mesmo políticos responsáveis, veio dizer aos portugueses que, se não fosse o patriotismo da gente do Norte, a sua coragem, a sua determinação e a dos militares aqui em serviço, o Partido Comunista não teria hesitado em assaltar o poder e a guerra civil teria sido inevitável!
Quando, às 2h da manhã, o Presidente da República chamou a Belém Álvaro Cunhal, dizendo-lhe para desistir, pois o Norte estava coeso e com muita força, Cunhal cedeu. Sempre que se têm feito referências ao 25 de Novembro, nestes 30 anos, o Norte e a sua Região Militar têm sido sistemática e totalmente esquecidos, quer pelos responsáveis políticos, quer pelos generais nascidos no tal "Comando da Amadora". Porquê?
Durante 30 anos, só se tem lido e ouvido que quem comandou o 25 de Novembro foi o herói Ramalho Eanes. Por amor de Deus, acabe-se de vez com esta mentira! Aliás, este militar, se fosse um homem de carácter e não "sofresse" de dupla personalidade, já teria vindo a público (teve inúmeras oportunidades para o fazer...), para denunciar esta mentira (que ele, em consciência, sabe que o é), e dizer aos portugueses que, de facto, quem comandou o 25 de Novembro foi o general Costa Gomes. Não permitir que, na nossa História, se minta às actuais e futuras gerações são os meus votos. General na reforma