Peter Hall e Lara Foot Newton foram mentor e protegida durante um ano
É um programa que se desenha à medida dos participantes. No Rolex Mentor and Protégé Arts Initiative um par de artistas, um consagrado outro "jovem promessa", estabelece as regras para um ano. Peter Hall, "instituição do teatro britânico", mentor da sul-africana Lara Foot Newton, abriu as portas dos seus ensaios à protegida
Lara Foot Newton diz que Peter Hall é magnético. Peter Hall diz que foi "revigorante" ver o mundo através de Lara Foot Newton, alguém 30 anos mais novo do que ele. Os dois encenadores - ele com 75 anos e ela com 38 - têm em comum o facto de serem "absolutamente precisos, muito claros", considera o britânico. "Não gostamos de sentimentalismo, de imperfeições. Gostamos da precisão." Ou, nas palavras da sul-africana, têm a mesma "obsessão de contar histórias", que "leva à precisão".
Peter Hall e Lara Foot Newton, encenadores, formaram um dos seis pares de artistas que o programa The Rolex Mentor and Protégé Arts Initiative juntou no seu segundo ciclo (2004-2005): Hall como mentor, Foot Newton como protegida.
Criado em 2002, este projecto bienal junta pares de artistas de seis áreas (literatura, música, teatro, cinema, artes plásticas e dança), dando "tempo" e dinheiro - 25 mil dólares - "a artistas emergentes" para "aprender, criar e crescer" através da ligação próxima a um artista consagrado (ver texto ao lado).
Peter Hall avisa que "não é como a antiga ideia do aprendiz" onde se tenta "que o protegido faça as coisas como faríamos": "Dá-se espaço ao protegido para aprender, para reagir à forma como o mentor trabalha." Numa curta conversa nos bastidores do Lincoln Center, em Nova Iorque, pouco antes do jantar onde foram anunciados os próximos mentores - e onde estiveram artistas como os coreógrafos Bill T. Jones, Trisha Brown e Anne Teresa De Keersmaeker, os artistas plásticos Christo e Jeanne-Claude e David Hockney, os escritores Mario Vargas Llosa e Toni Morrison... -, Hall acrescenta: "Como encenadora Lara tem certas semelhanças comigo mas é completamente diferente e não é a minha função tentar que ela se pareça comigo mas encorajá-la a ser como é."
Encenadora e dramaturga
Com mais de 50 anos de carreira, Peter Hall montou mais de 200 espectáculos e 40 óperas, encenou 30 peças de Shakespeare, estreou em inglês À Espera de Godot, de Samuel Beckett (em 1955), várias peças do amigo Harold Pinter, Nobel da Literatura deste ano. Realizou dez filmes, escreveu cinco livros, fundou companhias como a Royal Shakespeare Company, em 1960 (à frente da qual esteve durante dez anos) e a sua, Peter Hall Company, em 1988; dirigiu teatros como o Royal National Theatre (entre 1973 e 1988) e o Rose Theatre em Kingston upon Thames (desde 2003)...
Lara Foot Newton trabalhou no Market Theatre, em Joanesburgo, é encenadora residente no Baxter Theatre da Cidade do Cabo, já encenou mais de 30 peças, a maioria sul-africanas.
Ainda hoje, Peter Hall diz que não sabe porque escolheu a encenadora para ser sua protegida: "Falei com ela durante três horas e pensei que era muito interessante. Foi instinto." Na altura, Hall pensava que tinha seleccionado uma encenadora mas a meio de processo, quando ela lhe passou para as mãos a peça que escrevera, Tshepang, descobriu que ia trabalhar também com uma dramaturga. "E eu disse: "Uau!"", conta. Um ano depois, no fim do programa, aconselhou-a: ""Sê dramaturga porque isso é muito raro e há muitos encenadores". Lara tem um talento único." E conseguiu que a sua peça subisse ao palco do Gate Theatre, em Londres.
Antes do início oficial do programa em Junho de 2004, Foot Newton viajou até Inglaterra para assistir aos ensaios de Peter Hall no Bath Theatre Royal. O programa pressupõe isto: encontros em datas diferentes, marcados à medida da agenda dos participantes. Ao longo desse ano, a encenadora foi assistindo a ensaios de Peter Hall que, entre 2003 e 2004, encenou Shakespeare (As You Like It), Harold Pinter (remontagem de Traições) e uma ópera de Rossini (La Cenerentola). "Ele é surpreendentemente libertador, inteligente e um homem do intelecto", diz a encenadora à mesa de um restaurante de hotel em Nova Iorque. "É fascinante ver a complexidade do seu pensamento. E o que ele faz muito bem, de uma forma muito clara, é descrever o seu pensamento. É um gigante nesse sentido."
Actores concentrados ao máximo, ensaios ininterruptos durante horas, um magnetismo que faz com que as pessoas se aproximem do encenador: Foot Newton fala com entusiasmo de Peter Hall no trabalho. "Nunca vi actores tão concentrados. E ele trabalha horas sem intervalos. É uma máquina. Nunca vi tanta precisão ao ponto de toda a gente nem se mexer enquanto ele estava a trabalhar. Essa concentração é inspiradora."
Definindo-se como uma "mulher de um pequeno país", a dramaturga e encenadora acha que uma das coisas importantes deste programa foi ter criado "ambições internacionais" e uma "espécie de abertura de espírito". "No nosso país podemos ser um dos encenadores de topo mas de repente conhece-se pessoas que são mais ambiciosas, fizeram mais coisas e até podem ser mais novas e isso motiva-nos."
A subtileza de TshepangEm Nova Iorque, no Miller Theatre da Columbia University, Foot Newton apresentou Tshepang, a peça que escreveu e encenou sobre o abuso sexual de crianças na África do Sul, baseada numa história real, a violação de uma bebé de nove meses - segundo a encenadora as estatísticas apontam para 20 mil crianças violadas por ano no seu país. Foot Newton tratou o assunto com grande subtileza, usando um narrador que apenas sugere a brutalidade da história e colocando em palco uma personagem feminina que diz apenas uma palavra, o nome da filha. O ambiente criado pelo cenário (em palco estão objectos artesanais; figuras-esculturas em madeira e pequenas casas a simular a aldeia) e a simplicidade da encenação lembram o encenador inglês Peter Brook, que já esteve várias vezes em Portugal, é amigo de Peter Hall e uma das principais referências da encenadora.
Um dia, Lara Foot Newton gostaria de se dedicar inteiramente à escrita, confessa. "É reconfortante que alguém mais velho tenha um interesse directo em nós, que nos olhe nos olhos e nos diga que aquilo que fazemos é bom, preocupa-se, tem ambições para nós. É um privilégio alguém como ele preocupar-se com o facto de o meu trabalho ser visto internacionalmente."