A HERANÇA DO ÚNICO CIENTISTA PORTUGUÊS GALARDOADO COM O NOBEL AINDA É POLÉMICA
Em 1949, Egas Moniz ganhou o Nobel da Medicina por ter contribuído para a compreensão do funcionamento do cérebro, ao inventar uma técnica cirúrgica que entrou na cultura popular como um tratamento de má fama: a leucotomia pré-frontal, adaptada por um médico norte-americano
como lobotomia. Foi tema de livros e de filmes e, hoje, há até uma campanha nos Estados Unidos para lhe tirar o Nobel. Mas o seu trabalho
e a personagem que foi Egas Moniz continuam a ser mal compreendidos, 50 anos após a sua morte, até mesmo em Portugal. Por Clara Barata
Faz hoje 50 anos, morria, aos 81 anos, António Egas Moniz, o neurologista nascido em Avanca que ainda hoje é o único cientista português distinguido com um Prémio Nobel. O feito que valeu o Nobel da Medicina de 1949, no entanto, deu origem ao tratamento médico com pior reputação do século XX: a lobotomia. Foi nos Estados Unidos que o tratamento foi usado em massa, em adultos e até em crianças, para fazer face uma situação de crise da saúde mental, e foi nesse país que recentemente nasceu uma campanha para tirar o Nobel a Egas Moniz, por ter caucionado um tratamento que hoje é visto como bárbaro.
Em Portugal, Moniz permanece pouco conhecido, à espera de uma biografia que revele este cientista que tinha ideias inusitadamente modernas, mas uma ética na realização de experiências que hoje nos arrepia.
Nos anos 30, havia uma guerra entre a psiquiatria e a neurologia. Esta procurava afirmar-se, apresentando explicações biológicas para os processos mentais, numa altura em que a psicanálise estava cheia de força. "Ainda parecia mal que a neurologia se interessasse por outras coisas que não os actos motores. Propor intervir ao nível dos actos mentais, então, era revolucionário. Em Portugal, a cadeira de Neurologia na Faculdade de Medicina de Lisboa surgiu em 1911, era como a filha a rebelar-se contra a mãe psiquiatria", conta o neurologista Alexandre Castro Caldas.
A revolução biológica
Egas Moniz estava entre os revolucionários da neurologia: defendia que deveriam existir bases biológicas, orgânicas, para os processos mentais, e acreditava que seria possível tratar as doenças mentais através de intervenções físicas. Na falta de opções farmacológicas, que então não existiam, os tratamentos andavam em torno de vários tipos de choques: descargas eléctricas ou comas induzidos por excesso de insulina, por exemplo, eram métodos usados para tentar modificar as ligações que as células do cérebro estabelecem entre si, através de finas e longas fibras. O objectivo era cortar as teias neuronais patológicas que se estabeleciam ao nível das sinapses (as ligações na ponta das extensões dos neurónios).
Foi neste contexto que Egas Moniz resolveu optar pela cirurgia, mais precisamente por aquilo que designou psicocirurgia. O processo exigia abrir a cabeça dos pacientes, e entrar dentro do cérebro, para cortar algumas das ligações neuronais que poderiam estar na origem de desordens afectivas, doença obsessiva-compulsiva ou outras. "As ideias mórbidas, constantes, persistentes dos melancólicos e obsessivos entram em relação e exageram a actividade do complexo fibrilhar sináptico que martiriza estes enfermos", explicava o próprio Egas Moniz no livro Confissões de Um Investigador Científico (Edições Ática, 1949).
A zona do cérebro a atacar é a dos lobos pré-frontais, porque é aí que se encontram as funções mentais mais elevadas, como a capacidade de fazer julgamentos morais - é a zona das emoções, que nos permite tomar decisões avaliando os nossos sentimentos e os dos outros, como António Damásio e outros viriam a compreender décadas mais tarde -, concluiu Egas Moniz. E o que era preciso perturbar era as ligações entre os neurónios, as fibras que compõem a chamada matéria branca (leuco, em grego) do cérebro. Daí o nome da intervenção: leucotomia pré-frontal.
Reza a história que foi uma conferência a que assistiu em Londres, em 1935, em que viu esta técnica ser aplicada em macacos, que inspirou Egas Moniz a aplicá-la em humanos. Mas estas ideias, de cortar as ligações anormais e patológicas entre as fibras nervosas nos lobos pré-frontais dos doentes, andavam já a fervilhar na sua cabeça.
A primeira leucotomia fez-se há 70 anos
Está também agora a fazer 70 anos que Egas Moniz, auxiliado pelo neurocirurgião Almeida Lima, fez as primeiras experiências de intervenção cirúrgica sobre os lobos pré-frontais. A primeira tentativa foi a 12 de Novembro de 1935. "Foi nesse dia, com efeito, que fiz com Almeida Lima as primeiras injecções de álcool na substância branca do cérebro e em 27 de Dezembro realizámos a primeira leucotomia", conta Egas Moniz em Confissões de Um Investigador.A técnica foi tentada em 20 pacientes, enviados do Hospital Miguel Bombarda. Não se pode dizer que os resultados tenham sido esmagadores, mas deixaram Egas Moniz muito satisfeito: sete curas clínicas, sete acentuadas melhoras e seis sem resultados apreciáveis.
Como investigador que era, divulgou os resultados internacionalmente. Walter Freeman, um neurologista norte-americano que esteve presente na conferência de Londres que terá inspirado Moniz, viu o artigo do português e sentiu-se inspirado a tentar mudar a situação de ruptura que se vivia no seu país, ao nível da saúde mental (ver Walter Freeman foi o grande apóstolo da lobotomia nos Estados Unidos).
A descrição da forma como as experiências em pacientes foram concebidas e postas em prática, no entanto, não deixa descansados os nossos espíritos de princípios do século XXI. "As nossas tentativas operatórias não foram metodizadas no sentido de escolhermos, primeiro, um grupo de psicóticos, depois um outro, ou seriando os doentes escolhidos segundo o predomínio de determinados sintomas psíquicos. Seria mais lógico, mas inteiramente inexequível nas condições em que trabalhávamos", contou Egas Moniz.
Portanto, há que pôr de lado qualquer ideia de um estudo controlado, à semelhança de um ensaio clínico moderno, em que se pretendem ter resultados comparáveis com outras terapias, e verificar se as eventuais melhorias e problemas se devem à terapia. "Isso são ideias modernas. Aliás, só se fala disso de há uns 20 anos para cá, e na cirurgia ainda menos, está tudo muito dependente da opinião do cirurgião", comenta Castro Caldas.
Padrões éticos são diferentes
E o que pensar hoje de tais procedimentos, em termos éticos? "Hoje nunca se faria da mesma forma, mas também nunca se testaria uma vacina para a varíola como Jenner fez", inoculando um rapaz com material das pústulas de uma vaca que tinha uma doença parecida com a varíola, comenta ainda Castro Caldas.
"Do ponto de vista ético, a experimentação clínica que levou ao desenvolvimento da angiografia [ver O Nobel podia ter chegado décadas antes, por causa da angiografia] e da psicocirurgia levanta grandes reservas. Na angiografia, só ao 12º paciente é que conseguiu obter imagens do interior do cérebro, e um morreu. Há obviamente lições a tirar, do ponto de vista ético e de sociologia da medicina, mas as coisas têm de ser vistas na perspectiva histórica", diz o neurocirurgião João Lobo Antunes.
É por isso que a campanha desenvolvida por Christine Johnson, uma norte-americana cuja avó foi lobotomizada, para que seja retirado o Nobel a Egas Moniz (através do site http://www.psychosurgery.org) é vista como algo desprezível pelos neurologistas portugueses.
"É ignorância, o Nobel não lhe pode ser retirado, e foi-lhe atribuído não por ter inventado uma terapia, mas por ter sugerido que se podem encontrar no cérebro as regiões onde ocorrem processos mentais patológicos. Isto é que é uma ideia nova", explica Castro Caldas.
"Como Thomas Jefferson..."Christine Johnson contrapõe, em declarações ao PÚBLICO: "Egas Moniz parece-me um caso semelhante ao do grande estadista norte-americano Thomas Jefferson. Foi muito importante para os americanos, como Moniz é para os portugueses. Eram ambos homens muito ambiciosos e muito sábios. Mas ambos tinham defeitos. Não eram perfeitos. A falha de Jefferson era que escreveu acerca da liberdade, mas tinha escravos. Como é que um homem que amava a liberdade podia privar outros da sua liberdade? A falha de Moniz era a sua ambição. Ele queria tanto o Prémio Nobel que foi longe de mais para o conseguir."
O que quer então Christine Johnson e o grupo de 25 famílias de pessoas lobotomizadas? "Sinto-me mal por saber que muitos portugueses encaram isto como um insulto. Isto não é ataque personalizado. Sou apenas uma jovem de 35 anos, cuja avó foi muito magoada e que gostaria que fosse feita alguma justiça. Não quero destruir a memória de Egas Moniz. Admitir que ele pode ter feito julgamentos demasiado apressados neste caso não faz dele uma má pessoa. Torna-o humano."