Livro que revelou existência de judeus secretos em Portugal chega a Israel
Em Belmonte, no século XX, Schwartz encontrou portugueses que mantinham
a fé judaica em segredo. Não sabiam sequer que havia mais judeus. As práticas e características dessa comunidade
foram registadas numa obra "pioneira" que agora, ao fim de 80 anos, foi traduzida para hebraico.
Por Alexandra Lucas Coelho, Jerusalém
Em Israel, o Outono político está tão aceso que nenhum argumento é de excluir. Há dias até os cristãos-novos de Portugal foram puxados para a batalha."Isto é exactamente o que fizeram aos judeus portugueses", indignou-se o ministro Yisrael Katz, um governante que não seguiu Ariel Sharon para o novo partido Kadima, e agora é um dos seus rivais, no Likud. Sharon convidara dezenas de autarcas para uma reunião. Uma tentativa de conversão forçada, acusou o ministro.
O caricato episódio mostra como a imposição da fé cristã aos judeus portugueses do século XV não será uma referência completamente periférica em Israel.
"É um dos mais traumáticos e inesquecíveis capítulos da história judaica", refere a escritora e crítica Ruth Almog numa longa recensão há dias no diário Ha"aretz.
O artigo de Almog é dedicado à recente tradução para hebraico de um livro pioneiro sobre os cripto-judeus portugueses do século XX, ou seja, os marranos, descendentes daqueles que foram obrigados a converter-se e ao longo de cinco séculos mantiveram em segredo rituais judaicos.
A obra - Os Cristãos-novos em Portugal no Século XX - foi originalmente escrita em português e publicada em 1925 por Samuel Schwarz, um judeu nascido na Polónia em 1880.
Engenheiro de minas, culto e curioso, Schwarz trabalhou em diversos lugares (Polónia, Azerbeijão, Inglaterra, Espanha), até chegar a Portugal, em 1915.
"Foi convidado para as minas da Beira, sobretudo as de volfrâmio, perto de Belmonte, e assim encontrou a gente a que os outros chamavam judeus", conta Claude B. Stuczynski, prefaciador e tradutor da edição.
Aos 39 anos, caracóis até aos ombros, kipá negra, joviais olhos azuis, Stuczynski é um especialista nos cristãos-novos portugueses. Veio do Uruguai para Israel há 18 anos, e estudou História na Universidade de Bar Ilan, onde hoje ensina. Doutorou-se com uma tese sobre os convertidos de Bragança no século XVI, que será publicada em Israel no fim de 2006. Esteve muitas vezes em Portugal e considera Trás-os-Montes "uma casa".
"O que achei fascinante no fénomeno cristão-novo foi a dificuldade de descobrir a identidade real destas pessoas." E porquê especificamente as de Portugal, quando Stuczynski até era um falante de espanhol? "Apesar de só concordar parcialmente com as suas teses, apaixonei-me pelo livro de António José Saraiva sobre a Inquisição e os cristãos-novos. O facto de eles terem sido a outra etnia de Portugal no começo da Idade Moderna. Em Espanha encontram-se muitas minorias, é uma sociedade pluri-classista. Em Portugal a grande minoria era a dos cristãos-novos. A visão de Saraiva foi criticada, mas ele tem razão nisto: os cristãos-novos, segundo o estereótipo, tinham um papel identificável de um ponto de vista social e étnico."
Não havendo números exactos, "um cálculo intuitivo" - referido pela historiadora Maria José Pimenta Ferro Tavares - aponta para 10 a 15 por cento da população. Entre 100 mil a 150 mil pessoas, num total de um milhão. Dois terços teriam vindo de Espanha quando os judeus de lá foram expulsos, um terço teria raízes portuguesas "pelo menos desde Afonso Henriques".
Em Portugal existiam também os mouriscos e os africanos, mas "não eram minorias que pusessem em perigo a homogeneidade religiosa e cultural", distingue este investigador. Enquanto que os cristãos-novos eram vistos como "cripto-judeus, secretos, burgueses, homens de negócios".
Na realidade, "a maioria não era cripto-judeu nem homem de negócios, mas continuou a ser perseguida até Pombal". E nas Beiras e em Trás-os-Montes "os estereótipos continuam a ser fortes" depois disso. O que contribuiu para preservar a tradição judaica. "Os obstáculos à integração reforçam a identidade anterior."
Deus era a senhaEntre as suas actividades nas minas, Schwarz deparou com portugueses que cumpriam feriados judaicos como a Páscoa, o Yom Kippur, o Jejum de Esther. Que não comiam porco no Sabat. Que rezavam preces judaicas três vezes por dia. Que faziam tudo isto às escondidas, ao fim de séculos, sem saberem sequer "que existiam outros judeus além deles, sem conhecerem o hebraico".
Por tudo isso desconfiaram dele. Schwarz teve que rezar uma oração para provar que era judeu, e só quando pronunciou Adonai (um dos nomes de Deus) conseguiu reconhecimento. "O homem é judeu. Disse Adonai!", exclamou uma mulher. Era um dos poucos termos em hebraico que conheciam.
Schwarz empenhou-se então em registar as práticas e características dessa comunidade, e o livro de 1925, com prefácio de Ricardo Jorge (reedição nos anos 90, na Universidade Nova) é o resultado dessa pesquisa voluntariosa. "Não é o livro de um profissional, historiador, etnólogo ou arqueólogo", resume Stuczynski. "É um misto de investigação das tradições e de apologética do marranismo, ele não esconde o seu envolvimento e a sua simpatia pelo destino daqueles descendentes." Pelo que contém de informação, "é pioneiro", "sem dúvida, o livro mais importante sobre os cristãos-novos no século XX".
Schwarz diz que "não foi só o ostracismo que reforçou a identidade" destes judeus, e Stuczynski está de acordo. "Nem tudo era artificial, há um fundo de verdade perpetuado pelo ostracismo."
O destaque que Almog deu a esta tradução - 80 anos depois - no Ha"aretz confirma um pressentimento de Stuczynski. O de que este livro pode ser "um pequeno sucesso" em Israel. "Para o leitor de hoje o importante não é o horror da Inquisição, não é o heroísmo dos que conservaram práticas judaicas, mas a ideia de que há uma construção muito pessoal, fora do sistema, da identidade. Em certo sentido, tem um paralelismo com a construção de identidades plurais, em Israel e na diáspora."