O fatalista lá e cima, cá em baixo

Depois de uma "Mulher que Acreditava ser Presidente dos Estados Unidos da América" que continuamos a ter na conta de um passo em falso, "O Fatalista" traz-nos um João Botelho em recuperação de forma. É uma adaptação, livre mas respeitadora, inventiva mas fiel, do livro de Diderot ("Jacques Le Fataliste"), transposta com verve para o Portugal contemporâneo - ou pelo menos para algo que parece ser o Portugal contemporâneo. Acompanhamos então uma dupla - que pouco deve a um daqueles pares do cinema burlesco - formada por Tiago (o fatalista) e pelo seu "patrão". Rogério Samora, impecavelmente verborreico, é o primeiro, André Gomes, impecavelmente poltrão, é o segundo. Juntos, numa cumplicidade que só raramente se deixa atravessar pela hierarquia, percorrem de automóvel (Tiago é o criado, o motorista, o defensor do patrão) as estradas de Portugal, de encontro em encontro e de história em história, sempre pontuadas pela explanação da concepção filosófica do mundo aos olhos de Tiago: que tudo o que acontece "cá em baixo" está escrito "lá em cima" (e o essencial é que o "baixo" e o "cima" sejam categorias mais ou menos vazias, ou seja, possíveis de preencher a cada momento).

É curioso que João Botelho, na nota de intenções com que apresentou o filme, tenha referido a "luta de classes" como a única coisa que verdadeiramente continua a fazer mover o mundo. É um tema antigo no cinema de Botelho, para não dizer que é uma tema com alguma recorrência no cinema português contemporâneo. "O Fatalista", na sua exposição de algo que por vezes não chegará a ser uma "luta" mas que se ficará apenas por uma "oposição", recupera um eixo central do cinema de João Botelho pelo menos desde o "dickensiano" "Tempos Difíceis" (1988) e que se mantém ao longo de filmes como "Aqui Na Terra", de 1993 (as estradas e a ruralidade de "O Fatalista" lembram as de "Aqui na Terra" em versão derrisória), "Três Palmeiras" (1994),ou - de maneira mais evidente - em "Tráfico" (1998). E "Tráfico", na assunção de um esteréotipo pegado pela sua face humorística (a "crítica de costumes"), será mesmo o filme que mais directamente se liga a "O Fatalista". Até por questões formais, de concepção plástica (a fotografia de Edmundo Diaz é notável, e ao mesmo tempo imediatamente associável a um "estilo João Botelho") e de registo narrativo, fugindo ao realismo e ao naturalismo para chegar a uma espécie de teatralidade "vaudevillesca".

"O Fatalista" também são histórias e episódios cruéis. Uma, em particular, concentra boa parte do discurso "classista" do filme, e é possivelmente o melhor "naco" de um filme estruturado em "nacos". Falamos do episódio com Rita Blanco e José Wallenstein (que também inspirou Bresson para "Les Dames du Bois de Boulogne": é preciso coragem para "refazer" Bresson, mesmo sem fazer um "remake"), espécie de romance de Agustina atravessado por um buraco negro, que põe em cena uma "terrível vingança" e onde tudo é uma questão de esteréotipos e sentimentos de classe. Vale a pena dizer que Blanco e Wallenstein são magníficos nesse episódio, afinando pelo diapasão do resto dos actores deste filme - que é também uma demonstração do João Botelho "amador de actores".

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