Vinte e cinco anos depois, quem é John Lennon?
A imagem que dele se guarda é a do activista cantando Imagine ao piano. A música que dele se ouve é a criada com os Beatles. John Lennon é hoje, felizmente, um mito paradoxal
Uma voz na cabeça de Mark Chapman impelia-o a não ter contemplações. Falhara umas horas antes, quando pediu a Lennon que lhe autografasse Double Fantasy. Não podia falhar agora, quando o ex-Beatle por ele passava à entrada do Dakota Building, em Nova Iorque, de regresso a casa depois de uma rotineira sessão de gravação. Cinco tiros e cumpria o que as vozes lhe exigiam: matar o mito a que moldou a sua vida e que havia descoberto ser, afinal, um embuste. Tragicamente, os tiros de Mark Chapman foram certeiros - ainda assim, falhou o alvo. Matou o homem, assinalou o nascimento definitivo do mito. A 8 de Dezembro de 1980, morreu o Beatle genial com uma errática carreira a solo, nasceu o Lennon que se implantou no imaginário comum sentado ao piano branco de Imagine.Vinte e cinco anos depois da sua morte, quem é John Lennon? Muitas coisas, tal como o foi em vida. O activista liderando manifestações nas ruas enquanto declarava que "a propriedade não são nove décimos da lei, são nove décimos do problema", o vanguardista psicadélico criando obras-primas como A day in the life ou Tomorrow never knows e justificando-as resgatando o surrealismo como influência ("com ele percebi que as imagens na minha cabeça não eram sinal de insanidade"), o iconoclasta provocando um auto-de-fé contra os Beatles ("neste momento somos mais populares que Jesus; não sei quem desaparecerá primeiro, o rock"n"roll ou o cristianismo") ou o introspectivo dos primeiros anos a solo, utilizando a música como terapia para se libertar dos seus demónios interiores ("I don"t believe in Beatles/ Just believe in me/ Yoko and me", cantou em God).
Uma personalidade contraditória
Lennon foi e continua a ser tudo isso: um músico inigualável e uma personalidade fascinante e contraditória, como obrigatório em alguém que, como poucos outros, foi reflexo e impulsionador de uma época de profundas e convulsivas revoluções sociais e culturais. Claro que o processo de mitificação, coisa perversa por natureza, tudo simplifica e suaviza na criação de uma imagem apreendida por todos como unívoca. Exemplos disso mesmo não faltam - e não precisamos de sair do universo da pop. Jim Morrison, Brian Jones, Kurt Cobain ou Bob Marley, tudo nomes que, pelo cenário da morte, viram a sua vida e obra reduzidas no imaginário colectivo a uma série de clichés que, sendo verdadeiros, são também extremamente redutores. Dir-se-ia que com Lennon, cujo legado e imagem vem sendo perpetuado à imagem de Yoko Ono, se passa o mesmo. Contudo, há neste caso um pequeno grande pormenor que tudo altera. John Lennon foi vocalista, guitarrista e um dos principais compositores da mais importante banda de todos os tempos, os Beatles, e isso, obviamente, faz toda a diferença.
O Lennon a que todos recorrem quando o seu nome é evocado é o do activista pela paz, o de Imagine e de Give Peace A Chance, o homem de barbas e cabelo longo passando mensagens ao mundo, com Yoko, na cama de um hotel em Montreal. A música de John Lennon que ouvimos, por sua vez, é a criada com Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr - como o comprovam as vendas residuais das reedições e compilações da sua obra a solo, em contraste com as quantidades impressionantes de CD dos Beatles que continuam diariamente a voar das lojas.
Vinte e cinco anos depois da sua morte, Lennon é um mito paradoxal que, pela riqueza da sua obra e pela peculiaridade do seu percurso, escapa à unidimensionalidade. Ainda bem que assim é. O homem que certo dia afirmou "uma parte de mim suspeita que sou um falhado, a outra acha que sou Deus todo-poderoso", decerto apreciaria não ser engavetado em local seguro e imutável.