A mulher que deu voz ao desejo
Florbela Espanca morreu há 75 anos. Suicidou-se no dia em que fazia 36 anos. Matosinhos e Vila Viçosa prestam-lhe hoje homenagem
Florbela Espanca matou-se há 75 anos, em Matosinhos, no dia do seu 36º aniversário. Em boa medida, a sua obra constitui ainda hoje um caso em aberto, não sendo consensual o lugar que possa caber-lhe na poesia portuguesa do século XX. Mas a ideia corrente de que, embora muito lida, foi e é pouco apreciada pela crítica, é uma verdade com excepções a mais para ser considerada regra. Antónia da Conceição Lobo, empregada doméstica em Vila Viçosa, deu à luz, em 1894, Flor Bela de Alma da Conceição. A certidão de baptismo dá a criança como filha de pai incógnito, mas é este que a vai educar quando a mãe, com apenas 29 anos, morre "de nevrose". João Maria Espanca e sua mulher acolhem também o irmão mais novo de Florbela, Apeles, que morrerá aos 30 anos, em 1927, num acidente com o avião que tripulava.
Os seus primeiros versos datam dos sete anos, e escreveu o primeiro conto ainda na escola primária. Concluiu os estudos liceais em 1912 e, nesse mesmo ano, casou-se com Alberto Moutinho, com quem foi viver para o Redondo, onde abriu um colégio e deu aulas de francês e inglês. Em 1917 inscreveu-se em Direito na Universidade de Lisboa, mudando-se para a capital, onde teve os primeiros contactos com os meios literários da época.
Frequentava o terceiro ano do curso quando, em 1919, publicou a sua obra de estreia, Livro de Mágoas. Divorciou-se pouco depois e, em 1921, casou-se com António Guimarães, de quem também se divorciará, em 1924, para casar com o médico Mário Lage. No ano anterior publicara o seu segundo título, Livro de Soror Saudade, mas já não conseguirá encontrar editor para o terceiro, Charneca em Flor, publicado postumamente, em 1931, pelo professor italiano Guido Batelli. No mesmo ano, sai um primeiro volume de correspondência e o livro de contos As Máscaras do Destino. Em 1934, são publicados os Sonetos Completos, acrescidos do conjunto inédito Reliquiae. Mas é só nos anos 80 que o trabalho de edição da obra de Florbela se conclui, com a edição de Diário do Último Ano, do livro de contos O Dominó Preto e, finalmente, da edição da sua obra completa, organizada por Rui Guedes a partir dos manuscritos da autora.
Os divórcios de Florbela Espanca, e o facto de ter ostensivamente vivido com os seus dois últimos maridos antes de se casar com eles, não lhe facilitou decerto a vida na sociedade patriarcal da época, e a impossibilidade de ver editado o seu terceiro livro é prova de que a sua obra não foi propriamente acolhida com entusiasmo. Factores que, tal como a morte precoce do irmão, provavelmente contribuíram para agravar o seu já frágil estado de saúde, marcado por problemas pulmonares, pelas sequelas de dois abortos involuntários e por uma provável doença mental hereditária, que lhe provocava insónias, enxaquecas e esgotamentos frequentes. No final da vida começou a consumir um barbitúrico, Veronal, ao qual depois recorreu para se matar.
Os sonetos de Florbela não tardaram muito, após a morte da autora, a tornar-se um caso invulgar de sucesso público. Muitas vezes reeditados, escolhidos para os reportórios de sucessivas gerações de diseurs, transformados em canções, tornaram-se um desses livros inevitáveis na casa de qualquer família letrada. E mesmo ao nível da recepção crítica, se é verdade que esta ainda hoje não é consensual, foi tendo o aval, só talvez um pouco tardio, de nomes tão relevantes como Sena ou Régio, que não só lhe dedicou um estudo, como a colocou a fechar a sua antologia das Líricas Portuguesas, logo após as presenças de Pessoa e Sá-Carneiro.
Entre os estudos mais recentes sobre a poetisa, contam-se o de Maria Lucia del Farra, que confirma as várias manipulações a que Batelli submeteu poemas e dados biográficos, e um polémico ensaio de Joaquim Manuel Magalhães, que procura demonstrar que muita da singularidade desta poesia está precisamente no modo como "falha" todos os caminhos trilhados pela modernidade literária do seu tempo, um alheamento que ao mesmo tempo justifica o alegado desdém da crítica perante uma escrita vista como "fácil" e anacrónica.
O que não parece discutível é que a sobrevivência de Florbela se fica a dever à qualidade de muito do que escreveu, e não apenas ao facto de ter dado voz ao tópico silenciado do desejo feminino. Isso a que Óscar Lopes chamou o "erotismo feminino transcendido" de Florbela é algo que, abstraindo da intensidade lírica com que é expresso, dificilmente faria hoje corar a mais pudica estudante liceal católica. E mesmo para a moral da época, bem mais chocante terá sido, por exemplo, a poesia de uma Judith Teixeira, que também publicou os seus livros nos anos vinte, também era filha "ilegítima", também se divorciou, e cuja poesia assumidamente lésbica foi mesmo censurada pelo regime. Uma obra que, aliás, Florbela deve ter conhecido, já que colaborou no terceiro e último número da revista Europa, dirigida por Judith Teixeira.