Catarina Eufémia, mito e realidade
Desfeito o mito da gravidez da camponesa assassinada há 51 anos em Baleizão, por revelação da autópsia, fica, no entanto, a realidade da repressão bárbara que marcou a época
O mito foi conveniente para a época, até pelo seu simbolismo: uma camponesa grávida, abatida ferozmente pela guarda quando clamava por "trabalho e pão", personificava não apenas a revolta popular pela situação de penúria então vivida no Alentejo, mas um caso de violência extrema perpetrado por um dos braços armados do regime de Salazar. Era, para lá da realidade da sua tragédia, uma imagem eficaz de resistência. Mais: a pretensa gravidez de Catarina, baseada em conversas havidas com companheiras de trabalho dias antes da sua morte, tinha a vantagem política de se prolongar em metáfora. Era já não a gravidez física, mas a gravidez de uma ideia de resistência: como ela, outras surgiriam, em gerações futuras, para continuar a sua causa. Era vulgar, e não apenas nos meios comunistas, a ideia de que por cada resistente morto muitos outros se levantariam. Desta persistência se fez, durante décadas, a oposição a um regime que só muito mais tarde caiu de velho, com um empurrão definitivo do movimento de capitães, em Abril de 74.Por isso, a ideia da gravidez de Catarina foi sempre mais poética e política do que real ou física. A revelação, ontem, nas páginas do PÚBLICO, de que a camponesa de Baleizão não estava grávida (facto provado pelo testemunho directo de um dos médicos que a autopsiou, hoje com 87 anos, e confirmado no texto da autópsia) vem pôr fim a uma lenda de conveniência temporal, retirando-lhe qualquer verosimilhança, mas não anula, nem poderia fazê-lo, o que a lenda nestes anos provocou: a ideia de que um regime que mata, à queima-roupa, mulheres indefesas (grávidas ou não) não deve sobreviver. Catarina Eufémia, que há 51 anos, era uma camponesa comum (26 anos, casada, três filhos, um dos quais ao colo no momento fatal - e aqui não houve lenda mas pura verdade), viu-se empurrada, pelas más condições económicas e pelo clima repressivo, para uma reivindicação branda: mais dois escudos pela ceifa de uma seara. Eram, ao todo, catorze mulheres, suficientes para assustar o feitor, pouco habituado a outros mandos que não os do seu amo, retido em casa por doença. O medo levou-o a chamar a guarda, que não demoveu as mulheres das suas pretensões.
Queriam discutir um aumento. Catarina, escolhida para encabeçar tal comissão, respondeu, quando lhe perguntaram o que queria: "Trabalho e pão." Uma bofetada derrubou-a, a ela e ao filho que trazia ao colo. Levantou-se do chão (outro acto bem real, aproveitado também como metáfora da resistência) e terá dito: "Já agora mate-me." E o tenente matou-a, com uma rajada, três balas fatais que lhe fragmentaram as vértebras e deixaram no local uma imensa poça de sangue.
O cano da arma, diz a autópsia, "estava encostado ao corpo da vítima". Assim reagiu o inominável tenente Carrajola às palavras desassombradas de uma mulher que, sem ser militante de qualquer partido (como se fez crer, ligando-a ao PCP e penhorando os louros do seu sacrifício), exprimiu naquele momento a indignação de milhares de outras com uma coragem que lhe custou a vida. Não estava grávida de gente, mas de justiça. É essa a sua herança, simples na sua imensa dignidade.