O Crime do Padre Amaro bate recordes de bilheteira
Filme português
de Carlos Coelho da Silva interrompe divórcio entre cinema nacional e público
Não é crime, mas em Portugal, de tão invulgar, quase podia ser: 218.500 espectadores assistiram até anteontem à longa-metragem O Crime do Padre Amaro, divulgou o ICAM (Instituto do Cinema, Audiovisual e Multimédia).Com este número, a obra de Carlos Coelho da Silva entra directamente para a lista dos cinco filmes portugueses mais vistos de sempre, embora à frente estejam ainda quatro títulos, todos eles de meados e final dos anos 90: ouro e prata para Joaquim Leitão com os seus dois maiores sucessos, Tentação, de 1997 (360 mil), e Adão e Eva, de 1995 (254 mil). Segue-se no pódio Zona J, de 1998, (246 mil), enquanto no quarto lugar está Jaime (220 mil), desse mesmo ano (ver caixa). Nos tempos mais recentes apenas há memória do filme de Fernando Fragata, Sorte Nula, ter atingido perto de 75 mil espectadores, em 2004.
Estreado a 27 de Outubro em 25 salas, O Crime do Padre Amaro foi visto, logo no primeiro dia, por 3615 espectadores e seis dias depois já tinha contabilizado 53 mil, transformando-se no maior sucesso do cinema português de 2005 (o segundo filme mais visto este ano é Um Tiro no Escuro, de Tino Navarro, com 28.571 espectadores). Neste momento, a Lusomundo já estendeu a exibição a 80 salas e não tem data para o filme sair de cartaz.
Mas não é só em relação às produções portuguesas que O Crime do Padre Amaro está a ser um sucesso. Na semana de 17 a 23 de Novembro, os últimos dados que o ICAM possui, o filme só foi ultrapassado por Chicken Little e Flightplan - Pânico a Bordo, competindo taco a taco com gigantescas produções norte-americanas.
Estes dados vêm em contracorrente com um estudo que a Universidade Lusófona divulgou, no início de Novembro, concluindo que mais de metade dos portugueses tem uma atitude de indiferença face ao cinema nacional e que 93,3 por cento dos inquiridos afirmam preferir filmes estrangeiros, confirmando este divórcio. Mas os números gerados por este filme poderão parecer menos estranhos se pensarmos que O Crime do Padre Amaro (tal como os êxitos Tentação, Jaime e Adão e Eva) resulta de uma parceria entre a SIC e a Lusomundo, com a primeira a co-produzir (junto com Utopia Filmes, de Alexandre Valente) e promover e a segunda a distribuir.
Série televisiva a seguirO Crime do Padre Amaro é, então, um projecto da SIC, e partiu de um acordo celebrado entre a antiga direcção de programas, que Manuel Fonseca liderava - abandonaria o cargo numa recente remodelação -, e Carlos Coelho da Silva, supervisor de programas de ficção da SIC, que desde logo assumiu a condução de todo o processo de rodagem. Adaptar o livro de Eça de Queirós foi assim a solução mais óbvia entre muitas, diz Carlos Coelho da Silva, pois sentiu "um imediato gosto pelo romance, cheio de episódios e questões muito actuais, para além do conflito interior que o personagem do padre expressava entre o homem e a fé."
Dando, pois, as sondagens conta de um crescente e afirmado divórcio entre o público lusitano e o seu cinema, O Crime do Padre Amaro está aí para provar o contrário. Filmado em alta definição, formato digital que se aproxima da qualidade da tradicional película, o filme é TV numa sala perto de si. E o que hoje os espectadores vêem será mais tarde exibido na SIC - a marcação da data está ainda dependente da carreira dos filmes nas salas -, aí com a chamada de atenção para o que para o cinema foi cortado. Não bem igual - já que aí o sucesso de bilheteira é que sugeriu a divisão do filme de Joaquim Leitão em três episódios televisivos - foi o que aconteceu com Adão e Eva.
De início, a intenção de Carlos Coelho da Silva era fazer uma mini-série televisiva dividida em episódios, a exibir na própria SIC generalista, mas à medida que a produção foi avançando, assegura o realizador, "tornou-se claro que a história tinha grande potencial, tanto aos vários níveis de comédia e tragédia que sugeria, como pela opção, manifesta desde o princípio, de provocar uma visão contemporânea e mais livre da trama queirosiana."
Carlos Coelho da Silva vê o filme como "um projecto misto de televisão e cinema. Foi, aliás, uma questão sempre presente durante a filmagem." É por isso que este supervisor oportunamente transformado em realizador considera que "são dois meios perfeitamente conciliáveis, e influenciados de forma positiva. Há uma série de benefícios ganhos com essa convergência".
A esse facto não foi alheio, pois, o formato em que foi rodado. "A alta definição permite rentabilizar e poupar gastos de produção inerentes. Sem mencionar a maior rapidez e eficácia que se garante no imediato visionamento de cenas gravadas e na possibilidade de captar sequências mais longas que o permitido pela película." Mas não só. "Outra vantagem foi a poupança de produção feita por quem nela contribuiu, tanto no plano da escrita e de tempo como nas despesas financeiras."
Adaptação livre e contemporânea
O filme de Carlos Coelho da Silva é uma adaptação livre e contemporânea do clássico romance de Eça de Queirós com o mesmo nome, pegando no jovem e ambicioso padre (Jorge Corrula) e colocando-o num bairro problemático da periferia lisboeta do nosso presente. Podia ser a Zona J, e podia ser a paixão proibida entre raças trocado pela ruína de um cónego celibatário perdido de amores por uma sensual rapariga (Soraia Chaves). A banda sonora composta por nomes relevantes do hip-hop como Sam the Kid e Pacman dos Da Weasel entra também na onda e serve à recriação de um misto de convulsão social e urbanidade.
Quando chegar à televisão, e depois de conquistar o maior número de espectadores que há para conquistar, fortuna e luxo pouco garantido nos dias de hoje dentro do meio cinematográfico nacional, aquilo que teremos adiantado ao visto nas telas de cinema serão "cenas que não foram incluídas, personagens com um percurso mais extenso e uma construção mais rica que, naturalmente, reduzida aos 100 minutos do filme em exibição, haviam sido cortadas", admite Carlos Coelho da Silva. Mas isso só quando deixar de trazer gente ao cinema.