Rede portuguesa de teatros precisa-se!
Na cultura como noutras áreas, as redes estão, desde há alguns anos, decisivamente em alta. Muito se tem falado e bastante se tem feito para dar vida a redes, para criar pequenas e grandes redes e até para trabalhar ou programar em rede. Mas a verdade é que ao mesmo tempo que o termo se impôs e se fizeram significativos investimentos para criar ou dinamizar redes, foram-se gerando algumas confusões conceptuais e foram sendo colocadas no mesmo saco realidades muito diferentes. Importa, por isso, alguma clareza conceptual distinguindo a realidade da ficção, até para que os cada vez mais escassos recursos se dirijam nas direcções certas e deles se retirem todos os benefícios.
Como grandes redes estruturantes na área da cultura ressaltam, na dependência do Ministério da Cultura, a Rede de Leitura Pública, a Rede Portuguesa de Museus, a Rede de Arquivos e a "Rede" de Teatros e Cine-Teatros. A estas se somam outras redes, de iniciativa não governamental, mais ou menos formais, mais ou menos imateriais.
É precisamente sobre a "Rede" de Teatros e Cine-Teatros que gostaria aqui de me debruçar até porque, em rigor, creio que tem de rede apenas o nome... e que seria muito útil a criação de uma verdadeira e activa Rede de Teatros.
A actual "Rede" corresponde a um título que exprime de forma concisa o conjunto dos recintos que foram construídos ou renovados com apoios do Programa Operacional da Cultura (POC). Tratou-se de um investimento essencial que alterou profundamente, em dez anos, o panorama nacional - o que nos permite hoje pensar num novo patamar e numa nova ambição -, mas para lá desta dimensão física (acrescida do apoio pontual ao primeiro ano de programação) nada mais os une, nada mais os articula entre si, nada estrutura aqueles equipamentos como rede. São realidades muito diferentes, com modelos jurídicos diversos, com dinâmicas, objectivos, ritmos e formas de funcionamento e de decisão também muito diferentes, sem um "núcleo" central aglutinador.
Nesta "Rede" integram-se actualmente onze recintos (incluindo os em curso) em capitais de distrito: Bragança, Vila Real, Braga, Porto, Aveiro, Guarda, Castelo Branco, Leiria, Portalegre, Beja e Faro, tendo o POC contribuído com cerca de 40 milhões dos mais de 71 milhões de euros de investimentos estimados. Ficam por enquanto de fora sete capitais de distrito no continente, incluindo Lisboa.
Logo aqui se compreende que se se tratasse de uma rede "activa", com vida para lá do nome, não poderia deixar de fora algumas cidades, alguns teatros que não quiseram ou ainda não puderam recorrer aos apoios do POC. Em boa verdade com esta "Rede" pretendeu-se criar uma malha de recintos recuperados e basicamente equipados (deixando de fora questões como o figurino jurídico, as equipas, os financiamentos básicos etc.) e não torná-los um qualquer corpo articulado entre si. Mas é preciso mais. E parece por isso indispensável compreender o que fundamenta uma rede "activa", em alternativa à rede "passiva", nominal, que temos. E tornar claro de que rede ou redes precisamos.
Ora, só existe uma rede "activa" quando, simplificando, existe a aranha no centro, existe um núcleo, um objectivo comum que renova e alimenta continuamente a intercomunicação entre os vários fios ou canais. É em torno de objectivos comuns, de projectos concretos que as redes se podem estruturar, sendo essencial ainda a continuidade da intercomunicação entre elas. Três bons exemplos de redes regionais ou temáticas de programação-difusão são a Rede Comum no Norte, a ArtemRede na região de Lisboa e no Vale do Tejo e a Sem Rede dedicada a promover o Novo Circo.
À luz destas considerações que nova Rede pode vir a ser criada em alternativa à actual "Rede" de Teatros e Cine-Teatros? Que se espera do Ministério da Cultura neste domínio?
O exemplo da Rede de Museus
As boas e longas experiências de outros países europeus podem seguramente ajudar-nos, mas vale a pena atentar no caso da nossa Rede Portuguesa de Museus (RPM) para - salvaguardadas todas as diferenças - colhermos algumas boas sugestões. A RPM (inicialmente uma estrutura de projecto e só com a recente Lei dos Museus integrada formalmente no Instituto Português de Museus) foi criada como um "núcleo operacional" para promover nos museus nacionais, municipais ou outros, um conjunto de valências que vão desde a requalificação física e de funcionamento, a uma dimensão imaterial de estímulo à comunicação, à articulação institucional, à "promoção do rigor e do profissionalismo" etc. Podem aderir à RPM museus que preencham algumas condições consideradas básicas, e os que aderem têm (ou podem ter) apoios na divulgação, na formação, no acesso a informação e a meios úteis para consolidação do seu funcionamento e o alargamento das actividades. O estímulo é, portanto, forte e o esforço feito por muitos municípios e directores de museus para a "entrada" na Rede, a maior prova da sua importância.
Uma Rede activa e operacionalA esta luz imaginemos então uma nova Rede Portuguesa de Teatros (RPT): uma estrutura destinada a incentivar a articulação entre teatros, a circulação de informação, a divulgação, a criação de redes de programação e difusão, a integração de teatros - mas também de criadores, de programadores, de gestores culturais - em redes internacionais, o estímulo a intercâmbios de formação, de troca de informações e experiências, enfim, de toda a panóplia de iniciativas de que os teatros contemporâneos precisam para solidificar e desenvolver a sua actividade, e que não significam, em grande parte, dinheiro mas coordenação, articulação, estímulo.
Ponto essencial, a adesão à RPT não poderia ser limitada aos teatros que usufruíram de apoios do POC, mas limitada sim ao preenchimento de algumas valências básicas de funcionamento. Por exemplo, a existência de uma direcção artística independente, de uma equipa mínima, de programação e divulgação regulares, de autonomia administrativa e orçamento próprio parecem ser exigências essenciais, básicas, para que os teatros possam responder de forma consequente ao que uma RPT lhes poderia oferecer.
A cada um, depois, as suas opções artísticas, o aderir ou não a outras redes trilhando o seu caminho na oferta cultural e na conquista de públicos. Mas a RPT tornar-se-ia seguramente um estímulo poderoso para que as autarquias olhassem com um respeito acrescido para os seus recintos culturais, que foram proliferando um pouco por todo o lado, vezes demais sem as condições mínimas para cumprirem a sua suposta missão, vezes de mais ao sabor de lógicas de "chave na mão", sem estratégia nem futuro.
É que, não é demais repeti-lo, os muitos tTeatros que existem em Portugal são realidades muito díspares, que vão desde estruturas autónomas e dinâmicas a meros departamentos de uma divisão municipal, sem equipamento adequado, sem orçamento, sem direcção artística, sem carreiras definidas, sem verdadeira hipótese de cumprirem o que podemos imaginar como a "missão" básica de qualquer pequeno ou grande teatro.
Não podemos esquecer que a requalificação física continua a ser muito necessária, mesmo em capitais de distrito (até para emendar erros decorrentes de projectos feitos sem uma sólida assessoria técnico-artística). Mas é urgente que nesta área os apoios sejam atribuídos com uma grande exigência na criação de condições para o funcionamento consistente dos teatros. O recente episódio com a direcção artística do Teatro Aveirense serve como ilustração negativa desta necessidade.
Naturalmente é uma iniciativa que só se pode imaginar como partindo do Ministério da Cultura (mesmo se articulada com as CCDR, que deverão ganhar uma acrescida importância no âmbito do próximo QREN que virá substituir o actual QCA III) um conceito de Rede activa, operacional, adequada a uma nova ambição no funcionamento do tecido artístico e ao reforço da sua competitividade. Uma Rede que contribua decisamente para tirarmos todas as consequências positivas dessa admirável oportunidade que é existir já, de norte a sul, uma malha de equipamentos que podem ajudar a mudar o panorama cultural nas artes do espectáculo.