Estado de emergência reabre feridas da guerra da Argélia
Amiens foi a primeira cidade a aplicar a controversa medida do recolher obrigatório
Numa das sessões mais agitadas da Assembleia Nacional em Paris, o primeiro-ministro francês, Dominique de Villepin, estendeu ontem a mão aos jovens dos bairros desfavorecidos, prometendo medidas de acompanhamento no plano social e económico. O Estado vai desbloquear 100 milhões de euros para novas subvenções em 2006 e criar 20 mil empregos reservados aos jovens destas zonas difíceis. Num discurso de 40 minutos que abriu ontem um debate parlamentar sobre a situação nos subúrbios, o primeiro-ministro confessou que considera esta crise como "um aviso e um apelo". Mas, acrescentou, "a França não é um país como os outros e não aceitará que os cidadãos vivam separados com oportunidades desiguais".
Villepin falou depois da medida excepcional e com um valor simbólico demasiado pesado anunciada na véspera. Para restabelecer a ordem nos bairros problemáticos onde adolescentes provocam motins desde há 13 dias, o Governo optou pelo estado de emergência e pelo recolher obrigatório. Mas a base legal para esta medida, destinada, a priori, a fechar autoritariamente os miúdos em casa, é uma lei votada em 1955 para autorizar a instauração do estado de emergência na Argélia, onde se viviam os primeiros meses da guerra de independência desta antiga colónia francesa. No terrível contencioso histórico desta descolonização sangrenta, a reactivação da lei de 1955 desenterra recordações dolorosas.
No mercado de Aubervilliers, cidade em jeito de torre de Babel, a norte de Paris, Kacim grita pregões para vender maças e laranjas, mas confessa que lhe apetecia mais gritar de desespero: "Os meus pais são da Argélia. Eles viveram em Tlemcen o estado de emergência e o recolher obrigatório. E agora, os meus filhos vão viver o mesmo que os avós? Em França? Andámos para trás?" Mais à frente, José vende enchidos. Para este comerciante de origem portuguesa, "o Governo já devia ter tomado esta medida à mais tempo. Já lá vão cinco mil carros queimados, escolas destruídas, comércios postos a saque! Eu não tive problemas, mas conheço gente que não fecha o olho desde há duas noites.".
Alguns adolescentes carregam as compras das mães, e não se mostram loquazes sem o bando à volta. "Eu acho que isto agora, ainda vai ser pior", diz só um, que se atrasou a cobiçar umas sapatilhas.
O recolher obrigatório, cuja aplicação fica a cargo dos prefeitos (governadores civis) em cada região, foi decretado já ontem na cidade de Amiens, a uns 200 quilómetros a norte de Paris, e só para os menores de 16 anos, entre as 22h e as 6h. Esta primeira aplicação da lei, é quase um balão de ensaio, a ver como reagem os miúdos nesta cidade de província, mais habituada aos danos das inundações do que às depredações da violência urbana.
As primeiras reacções, na véspera, quando Villepin anunciou a escalada na política de segurança, não auguravam nada de bom. Um repórter do diário Le Monde, que estava nesse momento a falar com uns jovens num bairro de Aubervilliers, ouviu-os dizer: "O recolher obrigatório, é a guerra. Ele está a gozar connosco." Outro habitante do bairro, Djamel, já com 30 e tal anos, não estava menos indignado: "Viste o delírio do primeiro-ministro? Neste país, um árabe continua a ser um árabe. É grave. Quer dizer não nos consideram como franceses."
Apesar das reacções iradas, o Governo aposta noutro elemento dissuasor: quem for apanhado a não respeitar o recolher obrigatório incorre em dois meses de prisão, ou então a família deve pagar uma multa de 3700 euros - uma fortuna em bairros onde o desemprego é endémico.
A decisão do Governo não foi saudada com unanimidade, mas também não provocou uma celeuma política importante. Só os Verdes denunciaram uma "escalada desproporcionada" na política de segurança. O Partido Socialista Francês (PSF) promete ser "extremamente vigilante" quanto à utilização da lei de 1955, mas não tem nada a dizer, se "os princípios de liberdade forem respeitados". Alguns dos autarcas socialistas que têm estado confrontados com a violência, como Manuel Valls, que foi porta-voz do precedente Executivo de esquerda, esperam até um certo alívio das tensões.
A oposição comunista estima que o primeiro-ministro "devia ter aberto antes um grande diálogo" e duvida da eficácia da medida: "Não vejo como poderá ser aplicado o recolher obrigatório", disse a deputada Marie-George Buffet.
É nos media que a polémica é mais acesa. "Exumar uma lei de 1955 é enviar aos jovens dos subúrbios uma mensagem de uma brutalidade: a 50 anos de distância, a França entende tratá-los da mesma maneira que tratou os avós", escrevia ontem o director do Monde, Jean-Marie Colombani, avisando a seguir: "O primeiro-ministro devia lembrar-se que esta engrenagem de incompreensão, de febrilidade marcial e de impotência conduziu então a República aos piores dissabores."
Alguns comentadores antevêem um "erro histórico". Outros insurgem-se, como Clara Monod-Dupont, jornalista no semanário Marianne, que nasceu e viveu até aos 15 anos num bairro desfavorecido: "É indispensável restaurar a autoridade. Se esta lei era tudo o que o Governo tinha à mão, temos de ultrapassar o contexto histórico do passado."
A lei de 1955 foi aplicada outra vez em 1958 e em 1961, em França, para evitar golpes de Estado (ainda no contexto da guerra da Argélia) e na Nova Caledónia, em 1985, contra revoltas dos independentistas desta ilha no oceano Índico.
O decreto de aplicação da lei estipula que só pode vigorar por 12 dias. Se o Governo quiser prolongar o estado de emergência, terá de pedir uma nova lei ao Parlamento.
O ministro do Trabalho e da Solidariedade Social, José Vieira da Silva, disse ontem que a agitação social que se verifica em França não o "preocupa fundamentalmente", mas admitiu que em Portugal há "situações de risco". "Em Portugal, nós temos situações de risco do ponto de vista social", referiu o ministro, adiantando que essas situações provêm de grupos que apresentam dificuldades no acesso ao bem-estar, ao emprego e no ensino. Questionado sobre se a agitação social em França o preocupa, José Vieira da Silva disse: "Não é uma questão que me preocupa fundamentalmente." Contudo, o ministro acrescentou que o Governo está a acompanhar a situação dado que são "fenómenos graves que revelam mal-estar em grupos sociais e que podem agudizar tensões sociais" existentes. À margem de um encontro para assinalar o Dia Europeu dos Assistentes Sociais, que decorre em Lisboa, José Vieira da Silva disse estar preocupado em dar respostas aos problemas sociais que existem na sociedade portuguesa. "Em Portugal precisamos de reforçar as políticas de inclusão social, não por receio de problemas como os de França, mas por razões de justiça e de coesão da sociedade", referiu o ministro. Lusa