Mas, em "Elizabethtown", excede-se a si próprio: este é um filme que não só tem gente lá dentro - e gente a sério - como tem a vida inteira. E, como a vida, de forma descontrolada e desorganizada. Um descontrole que começou na própria montagem em fluxo do filme - partindo de uma cópia de 2h20 mostrada poucas semanas antes da estreia americana nos festivais de Veneza e Toronto como "work in progress", até chegar aos 123 minutos que agora estreiam por cá (e que foram recebidos na América com um acolhimento reservado da crítica e um violento fracasso de bilheteira). Filme demasiado pessoal que não se consegue largar, onde cada cena que se tira é um bebé que se abandona? Pode ser que sim: tudo começa com a morte de um pai enquanto visita familiares no Kentucky - tal como o próprio pai de Crowe, a quem o filme, baseado num conto que o realizador/argumentista nunca tirou da gaveta, é dedicado. Mas a verdade é que "Elizabethtown" só podia ser assim, descontrolado, desorganizado, em zigue-zague: porque a vida não é certinha, não segue os caminhos que pensávamos, apanha-nos de surpresa na curva. Não há nada de linear em "Elizabethtown", que parece continuar para lá do que seria o final ideal (à marca dos 90 minutos), que vai acumulando as epifanias emocionais das personagens, empilhando climaxes (que noutro filme marcariam o ponto final da história) até quase implodir sob o peso de tudo o que Crowe quer dizer. O milagre é que "Elizabethtown" não implode, de todo. Outro filme soçobraria sob o peso, mas Crowe consegue elevá-lo cada vez mais alto até... até se estatelar no chão. Talvez. E ainda bem que (talvez) se estatele.
Porque o falhanço é um dos temas recorrentes no universo de Crowe (logo desde a estreia na realização em 1989, com "Say Anything..."), e este é um filme sobre saber viver com o fracasso, sobre compreender que um falhanço é apenas uma oportunidade para recomeçar e não uma paragem, uma interrupção ou um ponto final. O falhanço é importante não pela derrota, mas pelo esforço - há uma dignidade especial em cair porque se ousou, e é essa dignidade que Crowe tem enfaticamente explorado nos seus filmes. Algo de sonho americano? Sim, mas de certa maneira virado do avesso; porque não há aqui outra ambição que não chegar a ser-se apenas quem se é.
crónica de um suicídio adiado.Por isso, antes da morte do pai, tudo começa com o falhanço de um ténis revolucionário que passa, em poucos dias, do próximo "statement" de moda da indústria do calçado a "objecto capaz de fazer toda uma geração querer andar descalça". Confrontado com um fiasco (em) público, com a sua queda de "menino-prodígio" e "designer" talentoso a fraude responsável pela ruína de uma empresa, Drew (Orlando Bloom) contempla seriamente o suicídio até receber o telefonema que lhe anuncia a morte do pai em visita a familiares na sua cidade natal (adivinharam: Elizabethtown, Kentucky, num dispositivo que espelha a própria morte do pai do realizador-argumentista, que faleceu em visita a familiares no Kentucky, pouco depois da estreia de "Say Anything..."). Cabe-lhe a ele viajar até Elizabethtown para tomar a seu cargo o funeral e impôr as disposições da família próxima, fazendo as vezes da irmã mãe solteira (Judy Greer) que tem um bebé para tomar conta e da mãe (Susan Sarandon), que nunca teve boas relações com a família do marido e entrou em desvairada e vitalista negação. A morte do pai parece ser apenas a última bofetada do destino que, no espaço de poucos dias, desfez a vida aparentemente perfeita de Drew, e o suicídio fica adiado até depois do funeral do pai.
Da morte anunciada, contudo, acaba por surgir a ressurreição, e a queda em desgraça contém em si as sementes da redenção; primeiro, graças a Claire (Kirsten Dunst), uma hospedeira de bordo irreprimivelmente optimista que, no avião quase vazio para Louisville, Kentucky, mete conversa com Drew, espécie de "deusa das pequenas coisas" que sabe como disfrutar de cada momento; e, depois, no encontro com o truculento clã familiar paternal que há anos Drew não revia e que o obriga a reavaliar o seu próprio distanciamento progressivo dos pais. Não se trata, por muito que pareça, de mais uma defesa dos valores tradicionais da família, nem sequer de um conto de fadas hollywoodiano em que o herói descobre magicamente quem é a tempo do final feliz, embora haja elementos disso, porque Crowe trabalha, afinal, dentro do sistema e de dentro de uma lógica de género (aqui a comédia romântica). Mas o que lhe interessa é como guardar essa lógica e manter-se respeitoso à substância subvertendo a forma - "Elizabethtown" substitui o final feliz por um final aberto que pintamos como feliz, não tem problemas em dar guinadas de 180 graus e deixar para trás o acessório para se concentrar no que realmente interessa.
E, mais do que a história do romance entre o "designer" em crise existencial e a hospedeira que finge uma felicidade que não sente mas sabe como encontrá-la nas pequenas coisas, o filme é a história de um percurso iniciático, de descoberta de si mesmo por alguém que se deixou convencer de que era outra pessoa, espelhada na fulgurante cena em que Susan Sarandon, no papel da viúva mal-amada, sobe a palco para uma elegia fúnebre do falecido marido que, do riso às lágrimas, está sempre na corda-bamba entre o sublime e o ridículo - e, por obra e graça da sensibilidade de Crowe e da interpretação transcendente da actriz, se transforma na chave do filme, o momento em que Drew percebe que não interessa ser-se um êxito ou um falhanço; interessa, apenas, quem se é e como se enfrenta a vida, o êxito e o falhanço.
expectativas e epílogos.O filme poderia ter acabado aqui; Crowe apõe-lhe um epílogo prolongado em que a metáfora do percurso iniciático é literalmente corporizada e que, à partida, parece ser um equívoco - como também o parece ser, por exemplo, a escolha de um Orlando Bloom demasiado "certinho" e sonâmbulo para esta personagem em tumulto interno. Mas é tudo uma questão de reajustarmos as expectativas - o sonâmbulismo de Bloom ajusta-se na perfeição a um Drew literalmente assoberbado pelos acontecimentos, alheio à realidade do que enfrenta (repare-se na justeza dessa catatonia à superfície na extraordinária sequência da longa conversa telefónica com a muito "pétillante" Kirsten Dunst, perfeita no papel da hospedeira de bordo). E o epílogo "on the road" funciona como "fecho do círculo" do que se conta nas duas horas de "Elizabethtown": a história dos dias em que decidimos o que queremos que a nossa vida seja, contada com a energia adolescente de um realizador que insiste em fazer filmes sobre as nossas vidas em vez de os fazer sobre as vidas dos outros (talvez seja por isso que os americanos não gostaram).
"Elizabethtown" não é um filme perfeito, mas pedir-lhe isso é passar ao lado do que ele quer ser. O primeiro dia do resto das nossas vidas raramente terá sido tão bem mostrado no cinema.