Encena uma obsessiva (e excessiva) história de amor em poderosas dicotomias: amor/morte; dia/noite; campo/cidade; Bem/Mal. Logo no início, a perturbar a harmonia do par amoroso, surge uma figura vampírica (a mulher "vamp" da cidade) que desencadeia as forças maléficas, pedindo a imolação sacrificial da mulher-anjo (a subtil Janet Gaynor), presa a um estereótipo conservador do amor sem sexo. Aliás, uma das imagens mais fortes desta primeira parte do "expressionista" drama em gente, fazendo do campo o espaço do Bem, passa pela surreal irrupção de um eléctrico que "viola" a floresta, ao uni-la a uma cidade de confusão e perdição, encarnação de uma "metrópolis" prenhe de tentações e de subversões.
Sob o signo da noite e da lua, gera-se o clima ideal para desequilibrar as forças harmónicas da natureza. Possuído por um impulso maléfico, o Homem desafia a ordem estabelecida e apenas se reconcilia com ela, depois de afrontar o mundo numa das sequências mais telúricas e essenciais da História do Cinema: a da tempestade no lago em que se perde, ocasionalmente, o objecto do amor, a mulher recuperada, em acto quase miraculoso, qual Ofélia resgatada das águas do esquecimento e da morte.
Embora a noite e a cidade, com a vertigem do parque de diversões ou a iluminação postiça de pequenas luas substitutivas, como candeeiros do restaurante, representem o Mal ameaçador, é no seu seio que o par "desavindo" se reencontra: projectado como no cinema na cerimónia de casamento nocturno, a que assiste, refazendo os seus próprios votos; desafiando as leis da física (e da lógica cinematográfica), quando se beija e o trânsito se adensa à sua volta, em prodigiosa utilização da sobreimpressão.
O real surge, em "Aurora", como uma transparência fílmica, para servir a manipulação total das imagens. Tudo é cinema, tudo é consciência da mobilidade da representação; até os intertítulos reflectem a distorção que o olhar coloca sobre o poder deliquescentes dos objectos e dos sentimentos. Quando o par, confrontado consigo e com os dados da sua existência e subsistência, pretende perpetuar-se numa fotografia, é com a imagem invertida na câmara escura e com a magia "voyeurista" do fotógrafo que nos deparamos. A imagem debruça-se sobre si própria, a tragédia transmuta-se em comédia burlesca e regressa sempre ao lugar do crime. O sexo perfila-se por detrás do amor e o epílogo exige que o cabelo da heroína "angélica" se solte em desafio às regras de um mundo de símbolos e de sombras: o porco que se solta na feira abre para a boa-sorte que inverte o sentido trágico da narrativa; a tempestade começa na cidade antes de transformar o lago em túmulo que devolve a morta à predisposição para o amor carnal. O eléctrico transporta o desejo, fazendo com que o sexo regresse ao espaço idílico, em que Homem e Mulher jogam um novo Jardim do Éden, investido de pecado e de redenção, como no cinema. Porque a luz que se abre sobre o novo dia, metáfora de recuperação e de eterno retorno, também se chama cinema.