Depois da cassette de video assassina de "Ringu" e da sua "remake" americana "O Aviso", eis mais uma tecnologia banalmente quotidiana usada como fonte de terror pelo chamado "J-Horror", designação aplicada às novas tendências do cinema fantástico "made in" Japão, marcando uma contaminação das novas tecnologias pelo espírito sobrenatural. Cinema fantástico que, depois de "O Aviso", "A Maldição" e "Águas Profundas", chega finalmente às salas portuguesas na versão original e não na "remake" americana - embora, ironicamente, isso aconteça com um item assinado pelo mestre iconoclasta do actual cinema nipónico.
"Uma Chamada Perdida" funciona, então, aos dois níveis habituais dos filmes de Takashi Miike - enquanto "encomenda" cumprida a preceito, de acordo com as regras do género ensaiado (aqui relativamente pouco subvertidas - nem sequer falta o "falso final" que quase relança a narrativa para a sequela, que já existe e não foi dirigida por Miike), mas também enquanto declinação dos temas recorrentes comuns a muitos dos seus filmes. Aqui, sem revelar demasiado das reviravoltas da narrativa, reencontramos a infância na origem do trauma (o toque misterioso do telemóvel é uma pista) e a exploração das contradições do Japão contemporâneo, o modo como a fé no progresso tecnológico colide com a espiritualidade quase zen de uma herança panteísta, mas também o final ambíguo e pouco ortodoxo que vem atirar um pauzinho para a engrenagem e obriga a repensar seriamente toda a narrativa do filme. Miike contém o gore (apesar do braço decepado que digita uma mensagem e do cadáver decomposto ressuscitado), desviando o seu vitríolo para uma perturbante abordagem ao sistema da "reality TV" na secção central do filme - o momento em que "Uma Chamada Perdida" descola verdadeiramente, com uma magistral gestão de ambiente, tempo e ritmo que apenas sublinha o quanto o nipónico tem crescido como cineasta ao longo dos anos. Não ficará como um dos filmes maiores da sua obra, mas merece muito mais do que mera vista de olhos.