Um feitiço na voz de Diamanda Galás
Entra no palco vestida de negro, martela no piano, e solta um portentoso: "My world is empty/ without you."Ninguém lhe é indiferente. Nem pode ser. Os ouvintes reagem e agitam-se nas cadeiras. Sim, o público estava sentado. Diamanda Galás roça os extremos. A voz viaja pela Sala 1 da Casa da Música. Ecoa, ora estridente ora cavernosa. Agudos e graves, numa escala de timbres. E o piano inquieto acompanha. A plateia volta a adensar emoções, tenta seguir a batida e pontuar-lhe as oscilações vocais.
Num tom másculo e desolado, Galás repete "My world is empty/ without you". O lamento rasga-lhe o peito, mas não lhe curva a pose: altiva, de negro a contrastar com o branco que os ombros ostentam. As mãos não param de desafiar o piano. Nem a plateia, também ela dominada por um negro de tom gótico. As respirações suspendem-se, soltam-se os aplausos, os primeiros de tantos que levaram a três encores.
Na apresentação do último trabalho La serpenta canta, a cantora, pianista e compositora norte-americana continua a provar a versatilidade vocal, a capacidade para reinventar o tom e adensar ritmos criados por outros. E para aturdir quem a ouve. Neste álbum, fortemente colorido de blues, percorre temas de Scream"Jay Hawkins. The Supremes ou de John Lee Hooker. Os gritos, com fonemas de extensos e lancinantes miares, não paravam de ecoar. Galás solta incompreensão: "Nobody knows what i feel /But me." As cadeiras voltam a tremer. As luzes acompanham a fuga da voz. As viagens fazem-se por dentro até à catarse, que surge com uma romanceada versão de I put a spell on you, de Screamin" Jay Hawkins. O piano cumpria ao desafio e a voz dava corpo à ira. Ao fundo, no palco em que apenas sobressaíam Galás e o piano negro, as sombras de luz expunham a mais intima silhueta. Aqui e ali surgem sons demoníacos, vindos das entranhas do mais poderoso desconcerto. Foi o caso da interpretação de Burning Hell, de John Lee Hooker ou de Frenzy, de Screamin" Jay Hawkins. Temas absolutamente recriados pela mulher que não gosta de Bush e lamenta a estupidez que grassa na América. A meio do espectáculo surge um aviso: "Vocês vão gostar desta." E, calmamente, os dedos foram arrancando do piano os tons de Baby"s insane. Depois de uma mexida nas cadeiras, explodiu um aplauso. Galás misturava a mais dócil poesia com tom tortuoso. Com muita improvisação jazz a amortecer os extremos. E um piano que desafinava em eco. A dor de amores retidos ou traídos ou impossíveis apenas lhe saía pela voz, a postura agarrada ao piano só se alterava para beber água, nos intervalos dos temas. Os fãs não paravam de aplaudir. A voz, de novo, a vencer qualquer tentativa de descrição, ressuscita os vivos. Ou inquieta-os. E penetra nos ossos como rajadas frias. Eis Dancing in the dark. O lamento, de novo. Muitos aplausos, um elegante e enigmático curvar no palco, que a fez voltar três vezes. Galás tinha avisado: "I put a spell on you."