A nova visibilidade da pobreza alemã
Um décimo das crianças tem uma vida precária, 4,7 milhões de alemães estão no desemprego, o crescimento estagna.
Durante muito tempo entre os mais ricos da Europa, a Alemanha descobre a miséria em grande escala, enquanto os resultados das empresas melhoram. Será que os alemães pensam que Angela Merkel pode mudar este estado de coisas?
O cartaz cobre todo um prédio em obras na Friedrichstrasse, em pleno coração de Berlim. É um dos locais mais frequentados da capital alemã. De longe, dir-se-ia mais uma publicidade aos seguros de reforma. Mas o pai que está com a filha aos ombros tem um ar preocupado. "Quando a pobreza constrói muros", indica a mensagem da Diakonie. A associação humanitária protestante, equivalente à Cruz Vermelha, desejou tocar forte. É a primeira vez que a Diakonie utiliza a palavra pobreza numa campanha de sensibilização. Essa palavra foi durante muito tempo tabu. Os alemães não admitem a ideia de que a terceira economia do planeta, o campeão mundial das exportações, possa gerar miséria. E ainda menos a ideia de que a fractura social tenha podido aumentar sob um Governo social-democrata. Muitos, como o chanceler Gerhard Schroeder, preferem falar das "boas performances" das empresas e da qualidade dos produtos alemães. "Surprising economy" (economia surpreendente) intitulava, há três semanas, o semanário liberal britânico The Economist. Surpreendente, com efeito. O desemprego mantém-se num nível recorde: 4,7 milhões em Agosto (11,4 por cento), sem contar com as 600 mil pessoas saídas das estatísticas porque encontraram empregos a um euro à hora. A economia social de mercado, invenção de um capitalismo de rosto humano de que os alemães tanto se orgulhavam, recebeu um grande golpe. O mercado ganhou ao social. E nem os sindicatos, até então parceiros indispensáveis da cogestão, nem a classe política, parecem em condições de mudar o curso das coisas.
Durante os cinco primeiros anos do Governo Schroeder, de 1998 a 2003, a proporção de pessoas abaixo do nível de pobreza passou de 13,1 a 13,5 da população. Os números respeitantes à pobreza das crianças são ainda mais alarmantes. Segundo um relatório divulgado pela UNICEF em Março, um milhão e meio, ou seja um décimo, vive na precariedade. Duas vezes mais do que há 10 anos.
Porquê este aumento? Tradicionalmente, as primeiras vítimas da miséria são as mães celibatárias, cuja proporção está em constante aumento, e os imigrantes. Mas nestes últimos anos uma nova forma de pobreza surgiu, a engendrada pelo desemprego. A Alemanha tomou consciência disso com a entrada em vigor da Hartz IV, a quarta e a mais contestada etapa da reforma do mercado de trabalho do Governo Schroeder. Desde 1 de Fevereiro, os subsídios de desemprego são pagos durante o máximo de um ano, mesmo para os que pagaram impostos durante toda vida. Para além desse período, o desempregado da Alemanha Ocidental recebe apenas 345 euros mensais e o do Leste 331 euros. Os que têm bens ou acções não beneficiam de nada. Quando souberam os pormenores da nova lei, os alemães do Leste entraram em cólera.
Uma palavra proibida"A deterioração da situação dos desempregados é anterior à Hartz IV", explica Lutz Leisering, sociólogo na universidade de Bielefeld. "Em 1993, considerava-se que 29 por cento dos desempregados viviam abaixo do nível de pobreza e 10 anos mais tarde a percentagem atingia 39. Mas as condições criadas pela Hartz IV vão certamente aumentar a tendência, porque levam os desempregados para o nível da ajuda social, que sempre foi uma fronteira entre pobreza e não-pobreza". Em França, esta situação é conhecida desde os anos 1960 como "exclusão social". Mas na Alemanha não. Até agora, preferia-se falar de "grupo marginal". "Sob Helmut Kohl, a própria palavra pobreza era proibida", recorda-se Lutz Leisering. "O Governo Schroeder foi o primeiro a encomendar um relatório sobre a pobreza e a riqueza da nação".
O estado da Alemanha agravou-se consideravelmente. Em 1980, era ainda um país muito rico, com um Produto Interno Bruto (PIB) per capita superior em 20 por cento à média europeia. Em 2004, este nível baixou para 1 por cento, colocando a Alemanha na décima primeira posição dos 15 países da União Europeia. "1.125 empregos são destruídos todos os dias na Alemanha", insiste Angela Merkel, a candidata da oposição. "Deixem de dizer mal da Alemanha", responde-lhe Schroeder. "É antipatriótico".
Pelo quarto ano consecutivo, o crescimento estagna e as previsões de 2005 referem um tímido um por cento. Mas a reunificação custou 1.250 milhares de milhões de euros, o que representa quatro por cento do crescimento. Que outro país da Europa é que o teria aguentado? A Alemanha não se tornou má, os outros é que se tornaram melhores.
Por outro lado, se o desemprego aumenta, as empresas comportam-se às mil maravilhas. Segundo os dados fornecidos pelo serviço federal de estatísticas Destatis, os lucros das sociedades alemãs aumentou 60 por cento entre 1995 e 2004, crescendo três vezes mais que o PIB. Sempre competitivas, estão ainda à cabeça das exportações mundiais.
Sinal positivo? Não necessariamente. "As performances da exportação têm um efeito perverso, considera Rudolf Hickel, professor de economia na universidade de Bremen. Em vez de atirar a economia alemã para cima, quebraram todo o efeito de relançamento do mercado interno. Porque, para serem concorrenciais, as empresas alemãs obtiveram dos sindicatos uma política salarial muito recuada. O consumo é penalizado. A época em que as exportações tinham um efeito imediato no mercado interno já passou. Este está de tal modo avariado que nada o consegue recolocar em marcha".
Nestes últimos anos, os assalariados alemães sofreram muito para conseguirem salvar o emprego. Viram o seu tempo de trabalho aumentar, renunciaram ao décimo terceiro mês, aceitaram reformar-se mais tarde. Resultado: os salários reais médios são inferiores em 1,5 por cento ao nível do ano 2000. O custo global do trabalho desceu cerca de 12 por cento, enquanto o da França estabilizou.
Os grupos conseguiram assim economizar bastante, apresentar resultados mirabolantes, mas não investiram no "capital humano" (expressão dominante de 2004). Reconstruída depois da guerra com base em valores muito igualitários, a sociedade alemã está em vias de viver um afastamento inédito entre as elites económicas e os cidadãos de base.
A imagem de Josef Ackermann, o patrão do Deutsche Bank, fazendo um V de vitória à saída do tribunal de Dusseldorf, onde comparecia por "abuso de confiança" no caso Mannesmann, ficará durante muito tempo gravada nas memórias alemãs pois enquanto o patrão mais bem pago da Alemanha ia a tribunal, o Deutsche Bank diminuía os seus efectivos de 90.000 para 63.000.
Miséria crassa de um lado, patrões bem pagos do outro, a mistura é explosiva. "Espero das empresas que não pensem só em ganhar dinheiro", disse Schroeder no congresso do SPD, no fim de Agosto. Os seus apelos ao patriotismo foram até agora vãos.
Dois pilares ameaçadosÀ falta de receitas, as finanças públicas estão num buraco negro. A Alemanha violou o pacto de estabilidade pelo quarto ano consecutivo. "A teoria de Adam Smith, segundo a qual quando as empresas nacionais se comportam bem é bom para para o país, não funciona", sublinha Rudolph Hickel. "O SPD acreditou que ao dar mais liberdade às empresas isto teria uma incidência positiva na conjuntura, mas não é o caso". As sociedades alemãs passaram já à era do capitalismo de mercado.
O SPD tinha ainda pelo menos dois tabus: a cogestão e a autonomia tarifária. Mas a CDU conta aproveitar do enfraquecimento dos sindicatos para se atirar a estes dois pilares do "modelo renano". O escândalo de corrupção revelado este Verão na Vokswagen não deu uma imagem muito positiva da cogestão. Este modelo foi durante muito tempo o garante da paz social nas empresas do país, e permitiu conseguir numerosos acordos muito modernos, inclusive na Volkswagen.
"A batalha consiste em encontrar uma forma de capitalismo renano revitalizado, que será liberalizado em certos pontos, mas não será apenas orientado para os accionistas", diz Henrik Uterwedde, director adjunto do Instituto Franco-Alemão. "O modelo anglo-saxónico origina menos desemprego, mas com um nível de pobreza e insegurança que os alemães não poderiam tolerar".
Em Dezembro de 1998, três meses depois da sua chegada à chancelaria, Schroeder tinha declarado: "Se não conseguirmos reduzir significativamente o nível de desemprego, não teremos merecido a reeleição". Em 2002, os eleitores deram-lhe uma nova oportunidade, considerando que não tivera tempo de prestar provas. O que está em causa nas eleições de hoje é saber se os alemães pensam que Angela Merkel é capaz de fazer melhor. Exclusivo PÚBLICO/Libération