Robert Wise Morreu o realizador acidental
Alguns dos seus filmes - West Side Story e Música no Coração, que lhe deram os Óscares, mas também Um Mundo a Seus Pés, que teria sido muito menor sem a sua montagem - são verdades universais
Nasceu e morreu como um smalltown american e durante muito tempo não quis ser mais do que isso. Não era suposto um filho mais novo de uma família da classe média (o pai carregava carne do matadouro para o talho) ser muito mais do que isso, sobretudo na América profunda encavalitada entre o Indiana e o Ohio que se foi abaixo durante a Grande Depressão. Robert Wise foi exactamente o que não era suposto ter sido (Hollywood foi a sua terra das oportunidades): começou como estafeta na mais pequena das majors, a RKO, e acabou a realizar - ou a montar, no caso de Um Mundo a Seus Pés, de Orson Welles - filmes que não são só filmes, são verdades universais. O realizador de West Side Story e Música no Coração morreu anteontem em Los Angeles, de paragem cardíaca, quatro dias depois de festejar o 91.º aniversário. Nos obituários que ontem circularam pelas agências há uma palavra que nunca aparece: autor.
Filme após filme - foram 40 -, género após género - do melodrama à ficção científica, do western ao musical, do biopic ao filme-catástrofe, do terror ao policial -, foi sempre esse o handicap que lhe atiraram à cara: às vezes era muito bom, às vezes era muito mau, mas nunca dava mostras de ter um programa que fizesse dele um autor no verdadeiro sentido da palavra (um cineasta com uma política, como passou a dizer-se nos anos 50). "Alguns críticos mais esotéricos alegam que não há um estilo ou uma marca Robert Wise. A minha resposta a isso é que tentei abordar cada género no estilo cinematográfico que julguei apropriado a esse género", respondeu numa entrevista.
Nem sempre lhe apeteceu justificar-se: houve alturas em que deixou que outros o fizessem por ele. Em 1998, quando o American Film Institute decidiu entregar-lhe o mais exclusivo dos prémios da indústria cinematográfica, houve campanha contra e a favor. "Apoiei-o porque ele representa a tradição americana da excelência, da honestidade e da integridade. Num certo sentido, ele foi o Steven Spielberg do seu tempo", defendeu na altura Martin Scorsese. A ter de o chamar autor, houve sempre quem preferisse chamar-lhe um autor menor (corn, como Capra, mas sem o génio): até Christopher Plummer, o capitão von Trapp de Música no Coração, se referia ao filme que celebrizou Robert Wise como "the sound of muccus" (qualquer coisa como "muco no coração").
Quis ser jornalista
Até assinar uma montagem que viria a ser considerada antológica e realizar dois dos maiores sucessos comerciais de sempre da história do cinema, Wise foi um self-made-man caseiro e discreto. Chegou a querer ser jornalista mas a Grande Depressão obrigou-o a procurar emprego na Califórnia, para onde emigrou em 1933. O irmão, que trabalhava no departamento de contabilidade da RKO, arranjou-lhe uma entrevista e a partir daí Wise queimou etapas: transportou bobinas da sala de montagem para a sala de projecções (ganhava 25 dólares por semana) até ser descoberto por um editor de efeitos sonoros, foi editor de efeitos sonoros (em filmes míticos da dupla Fred Astaire / Ginger Rogers como Chapéu Alto e A Alegre Divorciada, por exemplo) até se oferecer como montador.
Às tantas estava a cortar Um Mundo a Seus Pés e a receber a sua primeira nomeação para um Óscar. Nunca se esqueceu da primeira vez que viu Orson Welles, no plateau: era o velho cidadão Kane minutos antes de dizer "rosebud". "Fiquei terrivelmente impressionado. Um Mundo a Seus Pés foi um ponto alto numa vida de sorte", diria décadas mais tarde. Welles perdoou-lhe até o facto de ter acedido a cortar O Quarto Mandamento contra a vontade dele.
Tornou-se realizador por acidente alguns anos mais tarde, e com um filme que já estava a meio: o produtor Val Lewton estava desesperado com a lentidão de Gunther von Fritsch, a quem tinha encomendado a sequela de The Curse of the Cat People, e pediu a Wise que o substituísse nas filmagens. Acabou o filme em dez dias e deram-lhe um contrato de sete anos. Depois fez terror - O Túmulo Vazio, com Bela Lugosi e Boris Karloff, em 1945 - e outros filmes de rotina até se encontrar em The Set-Up, prémio da crítica no Festival de Cannes em 1959 e também a sua última produção para a RKO.
Depois esteve à vontade no western - Céu Vermelho, em 1948 - e na ficção científica - The Day the Earth Stood Still, em 1951 -, mas os Óscares só chegaram com as suas incursões no musical, primeiro com West Side Story, realizado a meias com o coreógrafo Jerome Robbins (foi a única vez na história da Academia que o Óscar de melhor realizador foi dividido), em 1961, e depois com Música no Coração, em 1964.
Continuou a fazer filmes - menores, mas sempre dentro dos prazos - até aos 85 anos e, apesar do seu estatuto de não-autor, foi presidente da Academia e do Directors Guild of America. Recebeu todos os prémios de carreira possíveis e ontem deveria ter recebido mais outro: a sua morte foi anunciada em primeira mão em San Sebastián, na véspera da abertura de um festival de cinema que ia homenageá-lo com uma integral. Tinha pedido à mulher para o representar (era lá que Millicent Wise estava quando recebeu a notícia). Foi sempre assim tão discreto.