Em Corpse Bride, de Tim Burton, até os esqueletos tocam blues
Um triunfal filme de Tim Burton, com bonecos de plasticina, olhos a saltarem
das órbitas, amor
para além da tumba
e blues. Até os esqueletos tocam blues em Corpse Bride
O cadáver é excquis! O odor pode ser a carne putrefacta, mas os olhos são de uma doçura imensa - e prontos a saltar das órbitas, e a deixarem vermes à mostra, ao mais pequeno movimento brusco que também pode desatarraxar pernas ou disparar braços. Ela estava enterrada e morta (mas mal, quer uma coisa quer outra...), quando foi desinquietada pelo pálido Victor, herói romântico malgré lui, que no bosque, na véspera do casamento, ensaiava de viva voz os seus votos e depositou a aliança num arbusto que não era um arbusto afinal, eram os restos mortais dela, era um dedo, e... e o cadáver aceitou. Ser noiva. E eis que o frágil Victor ficou com duas prometidas e entre dois mundos: o dos mortos (não por acaso o mais colorido) e o dos vivos (mais sombrio e monocromático), onde já tinha à espera Victoria.
É o novo filme de Tim Burton, Corpse Bride, com Johnny Depp (é Victor), Helena Bonham-Carter (a noiva que saiu da tumba) e Emily Watson (Victoria). E ainda Albert Finney, Christopher Lee... Ou seja, a "família" dos filmes de Burton, que surge creditada no genérico como se os actores de carne e osso participassem com a sua carne e os seus ossos em Corpse Bride, quando neste filme, que o realizador de Eduardo Mãos de Tesoura dirigiu a meias com Mike Johnson, o que é humano são as vozes e o resto é plasticina e animado com a técnica de stop motion: 24 tomadas de vista por cada segundo sobre marionetas de plasticina, 22 animadores, 34 sets em miniatura, 60 personagens, bonecos de 60 centímetros.
Doze anos depois de O Estranho Mundo de Jack, Burton regressa a uma técnica que hoje, na era da animação digital, pode ser considerada anacrónica, mas que nas mãos dele é não só um mundo que parecendo estar morto renasce sempre para mais uma dança triunfal, como é, mais do que uma técnica, uma verdadeira condição do ser "burtoniano", sua ética e estética. Vejam o que ele diz sobre essa forma particular de animação: "O que é belo na técnica do stop motion é a sensação de que tudo é concebido e feito à mão. É como Pinóquio ou Frankenstein, dar vida a um objecto inanimado. Para mim é um grande prazer ver a mão do artista no ecrã".
É por isso que dizer que só há vozes humanas em Corpse Bride, na verdade é reduzir em muito as coisas. Há actores de carne e osso, de facto, "dentro" destes bonecos. Victor "é" Johnny Depp (e cumpre a função de ser, como em todos os outros filmes de Burton, um alter-ego solitário e desenquadrado do cineasta) não só porque o "boneco" se parece com ele, mas porque é uma verdadeira "interpretação" - e é essa mistura entre o vivo e o inanimado que anima o cinema de Burton.
Visto em estreia mundial em Veneza, e fora de concurso, Corpse Bride já foi saudado como um dos melhores filmes de Burton. É um musical de fazer dançar os mortos, de fazer abanar o esqueleto empedernido. Aliás, os esqueletos tocam os blues, uma charanga descarnada para casamentos e funerais, composta pelo habitual Danny Elfman, que nos deve fazer perguntar se Tom Waits não será também um esqueleto do estranho mundo de Tim Burton...