Apesar de haver alguns desastres na sua filmografia ("Willow", "Far and Away", "Ransom"), essa imagem de segurança e competência parece prevalecer, por mais relativo que seja o "bom porto" - há um patamar mínimo de solidez industrial abaixo do qual Howard raramente desce, mas de onde também nunca sobe (há algum filme que tenha sido "marcado" por ele, pela positiva?). Previsivelmente, em "Cinderella Man" estamos em território bem "ronhowardiano". A sua principal virtude, ser capaz de fazer brilhar os chamados "valores de produção" (o que é importante, mas está longe de ser tudo o que é importante), está bem estampada - "Cinderella Man" é o equivalente cinematográfico de uma encadernação luxuosa, onde não há nada que não seja vistoso, da reconstituição histórica (os anos 30 da Grande Depressão) à fotografia (assinada por Salvatore Totino). O seu principal defeito, ser incapaz de ter alguma coisa para acrescentar à melhor ou pior gestão do "package", também.
Há uma boa história, contudo, suficientemente forte para resistir ao tratamento anódino que Howard, para lá do lustro sempre puxado, lhe dedica (aqui para nós, muito francamente, quando se trata de reduzir o cinema a uma questão de planos, sequências, cortes, enfim aquilo que para uns quantos é o essencial, Ron Howard é um dos realizadores mais maçadores do mundo). Uma história americana "clássica", de abnegação e triunfo contra todas as probabilidades, baseada no caso verídico do pugilista Jim Braddock, que depois de um começo promissor e de uma prematura decadência, voltou inesperadamente à ribalta, e sem que alguém o pudesse esperar voltou a lutar pelo título de campeão do mundo - e tornou-se um "homem-Cinderella", uma inspiração para a desesperada e empobrecida população americana, espécie de "john doe" (favor consultar os Capras do tempo da Depressão, onde o conceito de "homem-Cinderella" era explorado) que se eleva, "against the odds", acima da adversidade.
Com boa vontade, passa-se por cima do esquematismo e do decorativismo de "Cinderella Man", do registo manso e indiferente de Ron Howard (já se sabe: isto é o "mainstream" do "mainstream", pelo menos no que à falta de tempero diz respeito), aceitam-se os bonecos estereotipados que as personagens são (com Crowe e Paul Giamatti a coisa vai, mas Renée Zellweger, na inescapável "esposa sofredora", é bastante irritante), e aprecia-se a rotina insuflada mas minimamente competente que aqui se exibe - de um total de perto de duas horas e meia haverá uns vinte minutos que não parecerão completamente monótonos (o que não é um "ratio" nada mau). Lá pelo meio até há direito a uma cena inesperada: o herói humilha-se pedindo e aceitando a esmola daqueles (os promotores do circuito do boxe profissional) que o tinham impedido de trabalhar - estamos sempre à espera que no último minuto Crowe recupere o orgulho e recuse os donativos, mas não. Um herói humilhado assim, convenhamos, é coisa raramente vista.