O fogo é a mensagem Notas para o debate sobre mediatização dos incêndios
Tem sido objecto de discussão se devem existir limites à hiperabundância de imagens sobre o fogo nas televisões. Do ponto de vista normativo, a ideia de limites é sempre importante quando se trata do poder. Do ponto de vista conceptual, pode ser afirmado que as televisões exercem um poder, um poder fundado no facto de serem "meios de percepção" da realidade. Como meios de percepção da realidade, devem nortear-se por critérios de responsabilidade. No entanto, a tentação de condicionar estes meios de percepção do real é sempre grande, seja para fins políticos, através da propaganda, seja para fins económicos e comerciais.Sendo grande a responsabilidade dos meios de percepção da realidade, os critérios que as televisões seguem pouco têm a ver com a responsabilidade.
Em primeiro lugar, têm a ver com a sua demasiada dependência das técnicas, em particular das técnicas de captação e manipulação das imagens. A televisão é o universo das imagens técnicas, da tecnoimagem, caracterizando-se por manter uma corrente inflacionária de imagens, como se elas fossem a realidade a correr à nossa frente. As televisões vivem da opulência imagética e as tecnologias garantem essa abundância. Mas o público não precisa de tantas imagens, estas é que precisam de público. Nós somos espectadores das imagens que os aparelhos sofisticados nos fornecem. E por detrás desses dispositivos já não estão apenas os homens, mas a programação dos aparelhos. As imagens que as tecnologias nos fornecem são autónomas das nossas necessidades e até, em parte, do nosso controlo. Em grande medida, já nem é possível apagar as imagens. Elas estão nos autocarros, metros, aviões, aeroportos, ruas, locais públicos, por toda a parte. A televisão serve a televisão, não serve o bem público.
Por isso, as televisões passam e repassam as imagens dos fogos até à exaustão. Se o público dá sinais de cansaço, procuram aumentar a intensidade do drama até à próxima desgraça. Depois do caso Casa Pia, o suposto arrastão, enquanto não vem o terrível fascínio das chamas de Verão. É como alguém que para se fazer ouvir grita cada vez mais alto até que o ruído torna tudo inaudível. É difícil às televisões escaparem a este destino. Estes meios de percepção da realidade condicionam o público, embora este condicionalismo não seja idêntico para todas as pessoas. Há um poder de sugestão que é sempre posto em marcha pelas televisões. Desde finais do século XIX que a imprensa é analisada no âmbito das novas formas de sugestão. O fenómeno da sugestão é fulcral nos processos da psicologia colectiva. A televisão deixa a sua marca de sugestão no público. Qualquer público pode ser trabalhado por impulsos estranhos, actos excessivos, reacções psíquicas misteriosas.
As tecnoimagens não reflectem a realidade, refractam a realidade, quando não a tornam opaca. Desde logo, porque nenhuma imagem é a realidade, e depois porque estas podem ocultar as questões principais. Porque é que cada ano há mais fogos? Como é que chegámos a uma situação em que o Estado não consegue impedir que o país arda desta forma? Será hoje Portugal uma comunidade coesa, temos nós algum projecto nacional, capaz de preservar o património biológico, ambiental, histórico, temos nós algum projecto que seja algo mais do que sermos tão consumidores como os cidadãos dos países mais ricos?
Em segundo lugar, os critérios das televisões estão subjugados ao mercado, via publicidade. As televisões são não só um negócio, como um poderoso instrumento do mundo comercial e da expansão desse mundo. Quando emitem ao longo da noite e ao fim de semana, não o esqueçamos, estão a espalhar o mundo comercial a qualquer hora e dia; o mundo comercial está a penetrar nas nossas casas e na nossa consciência. O mundo comercial, através das televisões, não nos dá descanso.
As televisões estão, portanto, entre os dois ídolos do nosso tempo: a tecnologia e o mercado. Quem ousa questionar o desenvolvimento da tecnologia? Quem tem dúvidas se tal ou tal tecnologias têm consequências nocivas para a comunicação? Se têm consequências nocivas para o ambiente ou para a nossa noção de dignidade humana? A nossa vida é alterada pela tecnologia, o jornalismo é alterado pela tecnologia, e a nós só nos cabe celebrá-la, adaptarmo-nos a ela. A tecnologia aparece como se fosse neutral, dizem-nos que depende de ser bem ou mal usada. Ora, esta é uma noção errada. Até porque hoje a tecnologia e o mercado são interdependentes. Avançam só as tecnologias valorizadas pelo potencial de mercado, com base em expectativas com fundamento ou sem fundamento; ao mesmo tempo, o mercado necessita de novas tecnologias para implementar o consumo. O mercado, hoje, é global e encontra-se desregulado, segundo a doutrina de que a economia de mercado se basta a si própria. Tecnologia e mercado não estão ao serviço das necessidades humanas, as nossas necessidades são ditadas ou muito condicionadas pela tecnologia e pelo mercado.
A dificuldade está em limitar poderes que têm estado fora do controlo, fora de um quadro de regulação ético efectivo. O panorama dos media é o de uma informação transformada profundamente pela revolução tecnológica e comercial. A comunicação social arrisca-se a sair fora da esfera da cultura e do próprio âmbito comunicativo, ao desvincular-se de qualquer valor ético e politicamente relevante.
Não é fundamental a concertação entre os três canais. É bom que a RTP avance com esta proposta, mas o essencial é começar a dar o exemplo de contenção, evidentemente com maior imperativo moral no domínio do serviço público. Caso contrário, passa a imperar o esquema imoral de que só seremos éticos se os outros forem. Todavia, é evidente que um acordo entre todos os canais nesta matéria seria uma óptima iniciativa. Tanto mais que os grandes problemas do país, como é caso, só se enfrentam com posições que pressupõem um projecto de coesão nacional, de desígnio nacional.