Crise à esquerda no futebol português
Scolari convocou 20 jogadores para os encontros com o Luxemburgo e a Rússia, mas só dois são canhotos: Nuno Valente e Boa Morte. A explicação para a falta de esquerdinos parece ser de ordem genética
Esquerdinos precisam-se! Este podia ser o título de um anúncio, por exemplo, da selecção nacional ou no FC Porto, Benfica ou Sporting. De facto, o problema começa por ser dos clubes e depois repercute-se na selecção, que se abastece naqueles. O seleccionador nacional, Luiz Felipe Scolari, convocou 20 futebolistas para a campanha que se inicia hoje, frente ao Luxemburgo, e termina na quarta-feira, perante a Rússia. Só dois são canhotos: Nuno Valente e Luís Boa Morte. Será que ele tinha outras alternativas igualmente credíveis, enfim, jogadores cujo melhor pé é o esquerdo? A realidade portuguesa parece inequívoca: nem quantidade, nem qualidade. Talvez se possa falar em crise.O problema afecta mais a selecção do que os clubes, porque estes podem sempre recrutar estrangeiros. Ainda agora, por exemplo, o FC Porto contratou Marek Cech, da Eslováquia. Na defesa, Scolari só tem um lateral-esquerdo de raiz, alguém cujo percurso foi todo ele feito nessa posição: Nuno Valente. O internacional, que este mês (dia 12), note-se, completa 31 anos saiu do FC Porto e rumou ao futebol inglês (Everton), para poder representar a selecção. Sorte de Scolari, que não dispunha de muitas opções. "Não há ninguém. Já vimos tudo, fomos espreitar debaixo das pedras, nos escalões secundários, mas não há", terá confessado o seleccionador, citado pela revista Dez do Record. Mesmo na frente de ataque, a gestão do flanco esquerdo tem sido confiada a jogadores como Figo, Cristiano Ronaldo ou Simão, todos destros.
O problema, repetimos, tem origem nos clubes. Nenhum deles conta com um lateral-esquerdo português de raiz. O FC Porto tem um brasileiro (Leandro), César Peixoto, um extremo que recuou no terreno a pedido de Co Adriaanse, e Marek Cech; no Sporting, o lugar é disputado por um chileno (Tello), um brasileiro (Edson) e um moçambicano (Paíto); o Benfica tem um francês nascido em Cabo Verde (Dos Santos) e um brasileiro de 1,69 m e 61 kg (Léo), mas Koeman prefere o possante defesa-central Ricardo Rocha. Sendo assim, que pode fazer Scolari? Além do já referido Nuno Valente, o seleccionador já fez experiências com os laterais Rogério Matias (Guimarães) e Jorge Ribeiro (Dínamo de Moscovo), mas, aparentemente, concluiu que seria mais seguro optar por um jogador adaptado a essa posição. Umas vezes, apostou em Caneira, um central que, ao longo da sua carreira, foi utilizado noutras funções defensivas, e outras em Paulo Ferreira, um defesa-direito que já jogou à esquerda, tanto pelo seu clube, o Chelsea, como pela selecção.
"É um problema genético""Desde sempre existiu este problema no futebol português. Faltam esquerdinos e ambidestros. É um problema genético e pouco ou nada podemos fazer", explica o seleccionador nacional de sub-21, Agostinho Oliveira, adiantando que só é possível extrair qualidade da quantidade. Como esta escasseia, é difícil formar tantos esquerdinos como destros.
Os números dão razão àquele técnico, visto que, em Portugal, apenas cerca de cinco por cento da população utiliza preferencialmente a mão esquerda. "É uma percentagem muito pequena", afirma o professor do Instituto de Ciências da Saúde da Universidade Católica Portuguesa Alexandre Castro Caldas, referindo que a média não deve ser muito superior no que diz respeito aos membros inferiores, embora não exista nenhum estudo específico sobre isso. "Os casos de formas cruzadas não são muito frequentes", diz. O especialista em Neurociências Motoras da Universidade do Minho Nuno Sousa reforça que um destro normalmente só utiliza o pé esquerdo se for treinado especificamente nesse sentido desde cedo.
Quando não têm esquerdinos capazes, os treinadores utilizam um destro. Ou, se o problema for na defesa, um central, uma opção que, contudo, tem alguns riscos. Se o futebolista não tem o pé certo, a condução da bola torna-se mais difícil e os cruzamentos nem sempre são executados como mandam as regras. "Isso é sempre problemático", concorda Inácio, treinador do Beira-Mar, que, durante anos, foi titular do Sporting, do FC Porto e da selecção nacional como lateral-esquerdo. "Já nessa altura havia problemas em encontrar esquerdinos. Os meus concorrentes pelo lugar eram o Pietra e o Álvaro Magalhães, dois futebolistas [do Benfica] que jogavam com o pé direito."
O número de laterais-esquerdos é ainda menor, porque, como os canhotos são normalmente mais tecnicistas, existe a tentação de os aproveitar como médios ou extremos. Por vezes, contudo, alguns treinadores pedem-lhes que sejam laterais. Foi o que se passou agora no FC Porto, com César Peixoto. Num caso como este, o jogador precisa de algum tempo para se adaptar ao novo esquema, mas, muitas vezes, os resultados são positivos.