Carta aberta a Helena Matos
Querida Helena,
Conheci-te nos idos de uma aventura televisiva, chamada Travessa do Cotovelo. Quando lá cheguei já eras colaboradora do programa. Das melhores. Davas ideias e fazias a pesquisa necessária para a fundamentação dos temas agendados. Percebi de imediato que, para além dessa colaboração, deverias ter a visibilidade de uma presença à volta da mesa. Convidei-te para estares comigo, e com os convidados, frente às câmaras. Aceitaste e o programa ganhou com a tua participação. Acabada, para mim, a viagem na Travessa, fui acompanhando de longe o que fazias, até que comecei a ler-te, com a maior atenção, na coluna de sábado no PÚBLICO. Escreves bem e interessas-te por assuntos que me interessam. Mas, em geral, ao reflectires sobre eles, escolhes um ponto de vista cada vez mais avesso ao meu, como se os nossos postos de observação estivessem, sábado a sábado, mais afastados na cartografia do olhar, do pensamento, da emoção. Estás no teu direito, mais evolutivo seguramente do que o meu, que, reconheço, tem sólidos alicerces de fidelidade, porventura conservadora, a ideias e princípios que me marcaram, desde a adolescência e que, nem os desvios dos homens, que deles também se reclamam, nem os atropelos da história, que por eles invocam ser consequência, conseguem macular, em mim, a bondade do seu valor matricial.O meu trânsito é, sem qualquer dúvida, muito mais linear do que o teu. E é justamente a propósito dos Trânsitos que publicaste no último sábado, que senti a necessidade de te escrever. Dos Trânsitos e também das referências que fazes, em tom de chocarreira acre, aos que, no exercício das suas funções públicas, vão revelando sinais espúrios de uma "adolescência tardia".
Escolheste a data de 15 de Agosto, dia em que a Igreja Católica "assevera" a ascensão aos céus de Nossa Senhora, como gancho para as tuas farpas, no caso muito dirigidas ao dr. Jorge Sampaio, Presidente da República Portuguesa.
Comecemos pelo feriado católico da Assunção. Sou católica. Sei-me, de um saber "claramente sabido", católica. Não praticante, nada ortodoxa. Tenho a fé fundamentada no mistério dos "mistérios", não nos dogmas, que não acato. O que leva, porventura, a que a minha Igreja não me reconheça como uma das suas ovelhas. Mas, insisto, sei-me católica. Foi na adolescência que as marcas desta minha pertença se fixaram dentro de mim. Com o andar dos anos, dos acontecimentos que fazem notícia dos feitos de índole religiosa e das páginas dos livros que fui lendo, percebi melhor os meandros dos fenómenos das religiões e da construção das Igrejas que as representam. Estudei o significado dos rituais, das iconografias, dos calendários - massa fértil, e indispensável, para a agregação dos fiéis em torno do poder, simbólico e real, da sua Ecclesia. Quando dizes que a Igreja Católica "assevera", eu leio apenas "celebra" e, como cidadã portuguesa, acedo a mais um feriado religioso, sem imaginar Nossa Senhora a subir nuvens adentro. O que deveria, sendo católica. E que tu, talvez não crente, aproveitas como evocação sugestiva para dardejar, em movimento contrário, sobre o que teria descido, nesse mesmo dia, sobre a cabeça do nosso Presidente para, com a irresponsabilidade de uma "adolescência tardia", ter condecorado uns "milionários quarentões", de sua graça - U2.
Pouco atenta aos agraciados pela República fiquei a saber que José Mário Branco nunca o foi. Acho, como tu, matéria de escândalo, o que não me impede de ter gostado, e muito, do gesto do Presidente em relação aos U2. O grupo em causa nunca me fascinou. Conheci o seu trabalho já na idade adulta e as minhas preferências musicais tinham outras direcções. No entanto, como acho que cada um de nós, no seu posto de actuação, pode e deve tentar contribuir para a "melhoria" do mundo, passei a admirá-los pelas intervenções públicas que decidiram fazer em prol da denúncia das injustiças que assolam algumas partes desta terra que habitamos, África em particular. Dada a popularidade "global" da banda, o que fez deles os tais "milionários quarentões", como te lhes referes, o eco das suas iniciativas ganha uma ampliação notável e, porventura, contribui para uma outra consciencialização dos problemas, por parte do seu público mais jovem e, até, quem sabe?, para inspirar alguma outra exigência por parte dos decisores e dos seus compromissos. Digo eu, crente e confiante na transformação do mundo, algum dia para melhor. Digo eu, que não espio, não invejo, nem execro as receitas dos milionários da terra e que, sobre essa matéria, sempre me regozijo quando os vejo aplicarem-se em iniciativas de utilidade pública. Será esse o meu lado de "adolescente tardia"? Provavelmente.
Mas também "transitaste" na tua última coluna por outros territórios, diferentes dos palcos dos grandes concertos de rock. E sempre na senda de conhecimentos específicos da psiquiatria, da psicanálise e da psicologia, que, ao contrário de mim, pelos vistos dominas, foste dar à Sierra Maestra e às "frustrações" do nosso Presidente, enquanto adolescente, por lá não ter "combatido". Sabes, pelos vistos, mais do que eu sobre essa matéria. Mas o que eu sei, querida Helena, é que a Sierra Maestra, que alguns de nós (da minha geração, sobretudo), frustrados ou não na tua óptica, muito estimamos, foi e é um marco de referência na história do século XX, como coragem, vitoriosa ainda por cima, de um "pequeno" para expulsar um dominador "grande". O que aconteceu depois em Cuba, com a implantação de um regime ditatorial e injusto para o povo cubano, não apaga a luz libertadora e exemplar da Sierra Maestra. Em mim, e em muitos dos que teimam em lembrar o momentum dessa luz, não há nenhuma frustração por lá não termos estado, nem nenhuma obnubilação sobre o que se lhe seguiu. Podes crer. Há, sim, uma prova de fidelidade e de respeito pelo que aconteceu, quando aconteceu, como aconteceu.
Quando te conheci, na já referida aventura da Travessa do Cotovelo, ouvi coisas fantásticas a teu respeito. Uma delas, contada, ao que me foi dito, sem complexos nem frustrações de nenhuma "adolescência tardia", tinha a ver com outras aventuras, por ti vividas, nos anos quentes da Revolução de Abril. Entre outras rotas que em mais nova trilhaste, houve também uma serra, no caso a da Estrela. Com armas (não metafóricas) na mão, como "A que morreu às portas de Madrid", sonhavas então combater os activistas burgueses, contra-revolucionários, que queriam instaurar um regime democrático em Portugal. Como, entre muitos outros, o dr. Jorge Sampaio. É esse regime democrático que te permite, vê lá tu, escrever o que escreves. Sábado a sábado. No PÚBLICO, onde te leio.
O senhor W. Shakespeare explicou para todo o sempre que "somos feitos de sonho, e o sonho é feito de nós."
Lembras-te do teu sonho da serra, Helena? Jornalista