"Quem me dera poder inventar alguma coisa como as calças de ganga. Alguma coisa para que as pessoas se lembrassem de mim. Alguma coisa para as massas."Andy Warhol
Tim Burton é um caso singular de um autor inconfundível e largamente reconhecível operando no seio do sistema industrial do cinema americano. No passado, quando no cinema clássico a lógica do sistema de produção para as massas se sobrepunha ao reconhecimento dos autores, poucos foram os casos em que a evocação do nome do realizador se consagrou como contrato implícito nas expectativas públicas. Mas houve um Hitchcock, nome que era de tal modo uma promessa e uma garantia que até foi base de série televisiva, Hitchcock apresenta. E um Frank Capra pôde gabar-se de inscrever O Nome Acima do Título, o seu nome de realizador antes do título do filme.Quando nos anos 80 houve uma nova série de Hitchcock presents, o episódio que Burton realizou terá sido apenas mais um passo na sua metódica construção de carreira; mas em 1993, quando de Tim Burton"s Nightmare Before Christmas/ O Estranho Mundo de Jack, a realização estava confiada a Henry Sellick mas para todos os efeitos o filme era "de Tim Burton".
O que o torna tanto mais singular é ser um autor decididamente fora das normas. Não se trata apenas do facto, todavia crucial, de haver um grau de reconhecimento imediato que no entanto supõe uma imprevisibilidade quase constante - ele é um daqueles autores com os quais nunca se adivinha o plano seguinte. Trata-se também da singularidade de um imaginário que, visando sempre um alcance de massas, se realiza na "estranheza" e na perturbação, senão mesmo "subversão" dos critérios admitidos e da "normalidade".
Charlie e a Fábrica de Chocolate é um conto moral, mesmo uma "história edificante". Roald Dahl faleceu em 1990, mas enquanto autor de histórias infantis prolongou ainda o universo tardo-vitoriano de, por exemplo, um J.M. Barrie, o de Peter Pan - e fizeram os acasos que os nexos se tornassem ainda mais visíveis já que Johnny Depp, actor "burtoniano" por excelência, abortada que foi a carreira de Pee-Wee Herman (qual círculo fechado, alguns trejeitos de Depp neste filme evocam muito o protagonista e personagem de Pee Wee"s Big Adventure, primeira longa de Burton), trouxe com ele de À Procura da Terra do Nunca o miúdo, Freddie Highmore.
A bizarria de Burton fixou-se-lhe como uma "imagem de marca", consagrada com a derrisão de "série z" de Marte Ataca. O sucessivo A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça foi uma obra-sumúla, em que Burton terá parecido a alguns situar-se em terreno mais "mainstream". Daí sucessivas reservas aos filmes posteriores, O Planeta dos Macacos e Big Fish/ O Grande Peixe, como se Burton se tivesse fixado uma imagem de iconoclastia radical a que um ou outro daqueles filmes, ou ambos, já não correspondiam.
Continuo a não compreender em particular, e agora por maioria de razões, as reservas a Big Fish. Se elas se fundam numa "reconciliação" com a figura do pai, também a há e até, em primeiro grau, um moralismo muito maior em Charlie.
Vincent Price é figura tutelar do cinema de Burton. No primeiro filme reconhecível como seu, a curta-metragem Vincent, uma criança sonha transformar-se no actor e imagina-se em situações macabras como as dos filmes de terror em que aquele se celebrizou. A aparição mesmo ocorria em Eduardo Mãos de Tesoura em que era o inventor da criatura, como o Geppetto de Pinóquio. Agora é Christopher Lee, o mais famoso Drácula cinematográfico depois de Bela Lugosi (personagem em Ed Wood, de Burton), que é o pai, e num daqueles inacreditáveis golpes mirabolantes burtonianos, Drácula, estomatologista, reconhece o filho que tinha rejeitado pelas notáveis qualidades do seu aparelho dental.
Parece-me aliás que Big Fish é de algum modo um filme mais livre, ou mais constantemente inventivo, enquanto a máquina produtiva de Charlie e a proeminência do aparato cenográfico impõem alguma contracção, ou uma segmentação da narrativa. Mas quando falo em segmentação refiro-me à prodigiosa elaboração visual. Tinha ousado sugerir, a propósito de Big Fish, que Burton fazia uma aproximação a Mark Twain; agora é o Dickens de Tempos Difíceis ou Oliver Twist, na apresentação da fábrica, da mecanização e das classes laboriosas. Quando Charlie e as outras crianças mais os respectivos pais entram na fábrica de chocolate de Willy Wonka inicia-se uma viagem - no mais amplo sentido do imaginário e dos contos, como por exemplo Hansel e Gretel, de Grimm (uma recente versão portuguesa da ópera de Humperdinck chamava-se A Casinha de Chocolate), do qual aliás Burton realizou uma adaptação televisiva ainda nos seus anos iniciais na Disney.
Só que internamente às sequências não há limites para o delírio, caso dos extravagantes números musicais à Busby Berkeley dos Umpaloompas. Mas não se trata apenas do acumular de referências, umas mais estritamente cinéfilas, talvez outras mais genericamente perceptíveis (pelas reacções na sala, verifica-se que a paródia ao 2001 de Kubrick suscita uma hilariedade notória). Trata-se, no fundo, do cerne da arte de Burton: como retomar, reproduzir e perturbar um imaginário de massas?
Há anos, vi no Museu de História Natural de Toronto uma exposição assaz bizarra: os objectos dos filmes de David Cronenberg. Artista visual, vindo da animação, Burton é construtor de formas de quem eu desejaria ver uma exposição com os objectos, as "esculturas", as "composições" dos seus filmes. Ele é um pop artist, e não são poucas as analogias com Andy Warhol (Busby Berkeley torna-se agora outra referência comum), a fábrica de Willy Wonka, o homem que quer ser lembrado pelos seus chocolates, confundindo-se com a factory dos artefactos de Burton para deleite de massas. Ele é também um contador de histórias que redesperta em nós o apelo mais fundo e perturbante da fantasia. Tim Burton é um dos maiores cineastas e um dos grandes artistas contemporâneos.