Hugo Pratt Sabia como acabar uma aventura
Foi um dos maiores autores de sempre da BD. Viajante, aventureiro, romântico, Pratt deixou-nos um marinheiro eternamente livre. Entre a ficção e a realidade
É fácil imaginá-los numa trincheira na Etiópia a conversar sobre Yeats ou Borges. É fácil pensar nos dois a passear numa praça escondida de Veneza, rodeados de gatos ou partilhando um cigarro no convés de um navio a caminho dos mares do Sul. É fácil acreditar que estão ainda sentados à mesa de um bar em Buenos Aires à procura de um militar que lhes deve favores ou à espera de uma mulher que não vêem há anos.Em Hugo Pratt e Corto Maltese a ficção é um estado de espírito. O primeiro é real, um dos mais importantes autores de BD de sempre, e morreu há dez anos, na Suíça. O segundo, um marinheiro, é quase verdadeiro e desapareceu no final da década de 30, durante a guerra civil de Espanha.
Em comum, os dois homens - falamos assim mesmo que um tenha vivido sobretudo no papel - têm o gosto pela aventura e pela literatura, a origem multicultural, a necessidade de viajar e uma intensa ligação ao mar e às mulheres.
"Ele sonha com os olhos abertos e aqueles que sonham com os olhos abertos são perigosos porque não sabem quando acabam os seus sonhos", dizia Pratt sobre Corto, o personagem que criou em 1967, poucos meses depois da morte de Che Guevara, e que apareceu pela primeira vez nas páginas da revista Sgt Kirk, naquela que é para muitos considerada a melhor das 25 aventuras deste marinheiro solitário que o autor quis "livre" e "apolítico", A Balada do Mar Salgado.
De Veneza à EtiópiaPratt nasceu em 1927, numa praia em Rimini, Itália, onde os pais, que viviam em Veneza e tinham ascendentes ingleses, franceses, judeus e turcos, passavam férias. "Sou um veneziano e a água para mim é importante", costumava dizer. Na biografia que criou para o personagem que havia de lhe garantir a internacionalização, Corto também nasce ao pé do mar, filho de uma elegante cigana espanhola e de um marinheiro irlandês que depressa a abandona. A ligação ao misticismo, à maçonaria ou à cabala são para ambos herança de família.
Pratt passará a vida fascinado pelo aparentemente inexplicável e as aventuras de Corto são reflexo desse desejo de entrar no que não se conhece. Um desejo que estará certamente relacionado com a experiência africana da adolescência. O autor viveu até aos dez anos em Veneza, onde passava grande parte do tempo a ler comics americanos e em sessões de cinema com a avó - a sua paixão por actores e actrizes de Hollywood (nomes como Orson Welles, que homenageia em Corto Maltese na Sibéria, Gary Cooper e Errol Flynn, mencionados na série Escorpiões do Deserto) acompanhou-o até ao fim.
Em 1937, Pratt e a mãe vão viver com o pai, militar destacado na Abissínia, actual Etiópia. É nos seis anos em África, e graças à amizade que estabelece com um rapaz etíope, Brahane, que Pratt aprende swahili, o respeito por outras culturas e o ódio ao colonialismo.
Entre 45 e 49, colabora regularmente na revista Ás de Espadas, editada pelo chamado Grupo de Veneza, composto por cartoonistas e guionistas com uma forte ligação à BD norte-americana. Mas Pratt não podia parar e a próxima viagem levou-o à Argentina, onde viveu durante 13 anos, criou as personagens Sgt. Kirk (1953), Ernie Pike ou Ticonderoga (1957), e conheceu Dizzy Gillespie, uma das suas paixões jazzísticas, a par de John Coltrane, Miles Davis e Charlie Parker. A temporada de Buenos Aires é interrompida por um breve regresso a Veneza, onde casa pela primeira vez, e por uma estadia de um ano em Londres.
"No fim da minha longa experiência, a Argentina tinha perdido um estilo de vida baseado na espontaneidade", escreve Pratt. "O regresso à Europa correspondia ao fim dos sonhos e dos comportamentos ligados à juventude. A Argentina tinha feito de mim um adulto."
O autor e o anti-heróiVeneza voltou a servir-lhe de base entre 1962 e 1970. Depois de um período de estagnação, a sua carreira foi relançada pela revista mensal Sgt. Kirk que, com a francesa Pif Gadget (1970-73, em que Corto Maltese parece dominar por completo Pratt), contribuiu para o reconhecimento da qualidade do seu traço e das suas histórias, tanto pelo público, como pela crítica.
Os 14 anos franceses (1970-84) são precedidos de intensas viagens à Etiópia, Brasil, Lapónia, Quénia. Não é, por isso, de estranhar que Corto - marinheiro - não fique parado: o pacífico (A Balada...), a Sibéria (Corto na Sibéria), o Turquistão (A Casa Dourada de Samarcanda), Inglaterra (As Célticas), Argentina (Tango) e, claro, Veneza (Fábula de Veneza, um dos álbuns mais elogiados).
Quando morreu, em 1995, aos 68 anos, Hugo Pratt vivia na Suíça e tinha uma biblioteca com 35 mil volumes em que podiam encontrar-se algumas das suas principais influências literárias: Kippling, Rimbaud, Shakespeare e Jorge Luis Borges.
"Borges ensinou-nos uma coisa muito importante - como contar mentiras como se fossem verdades. Foi com ele que aprendi como dizer a verdade como se fosse mentira." Tal como o escritor argentino, Pratt, que também escreveu romances, admirava os autores que se dedicavam a criar falsas biografias, como Daniel Defoe e Joseph Conrad.
Para assinalar a sua morte, o Palácio Squarcialupi, em Siena, apresenta até 2 de Outubro uma antológica da sua obra, com 350 aguarelas e pranchas originais.
A exposição Périplo Imaginário é composta por sete núcleos e pretende, segundo a comissária Patrizia Zanotti, "sublinhar a relação entre o vivido - cultural e fisicamente - e o criado", disse ao diário espanhol El País.
Traduzido em 19 idiomas, Corto Maltese vende 200 mil cópias por ano e fez com que a BD passasse a ser vista como arte.
Pratt garantiu a Corto - romântico, solitário, provocador, irresistível - um lugar no céu dos anti-heróis, onde só entram os que associam as contradições e os defeitos próprios dos homens à eternidade reservada aos deuses.
Quanto às mulheres, ambos tiveram muitas, ou nenhuma. E também aí ficção e realidade se confundem: Louise Brookszowyc, que salva a vida a Corto Maltese em Veneza (A Fábula de Veneza) e acaba por ser assassinada em Buenos Aires (Tango), nasce da admiração de Pratt pela actriz Louise Brooks; a Pandora de A Balada do Mar Salgado - por quem certamente o marinheiro se apaixonou ("É precisamente por não te pareceres com ninguém que gostaria de te encontrar... sempre... em toda a parte", diz-lhe na despedida) - é inspirada em Gisela Dester, uma mulher de origem alemã que o autor conheceu em Buenos Aires e com quem viveu durante alguns anos. Sobre as mulheres Pratt admitia: "Seria maravilhoso cair nos seus braços sem cair nas suas mãos."
Zanotti lembra que o italiano iniciava sempre um novo álbum sem guião e sem fotos. "Dizia que, para começar a contar uma boa história precisava apenas de um bom final." Corto sabia como acabar uma aventura. Pratt também.