Torne-se perito

Em Neve Dekalim prepara-se a resistência: "Não vamos lutar mas também não vamos sair"

Em muitas casas de Neve Dekalim, há montes de conservas, leite e água de habitantes que querem prevenir um "desastre humanitário" quando o Governo cortar água e luz. E há pessoas que acreditam em milagres e que estão convencidas de que a retirada não vai acontecer.

O centro de Neve Dekalim, que é uma espécie de capital do bloco de colonatos judaicos de Gush Katif, está a fervilhar de gente. As ruas do centro, normalmente calmas, estão em plena actividade. A relva em frente ao conselho regional polvilhada de jovens de cor de laranja. O supermercado está a ficar com as prateleiras vazias. O Governo avisou que vai cortar electricidade e água até dia 15. As pessoas armazenam víveres em casa. "Cortar a electricidade e a água com este clima é potencialmente fatal, especialmente com tantas grávidas e bebés pequenos, como é costume nesta comunidade. Além disso, vão fechar a clínica, que é também onde há os medicamentos", diz o advogado holandês Yohan Rhodius, que está em Neve Dekalim a procurar processar o Estado de Israel por este estar a prestes a cometer "um desastre humanitário".
Rhodius está convidado numa casa do colonato, cheia já de água e leite e conservas de lata para permitir a subsistência durante dias.
"É um cerco", conclui. "Estou inclusivamente a pensar se não se adapta a estas pessoas a descrição de refugiados, já que um refugiado é uma pessoa que tem medo justificado de ser perseguido por razões políticas e religiosas", desfia Rhodius. "E estas pessoas estão a sofrer uma perseguição: o que mais senão tirar-lhes a comida?"
"Isto é violência. Tirar a água para mim é a mesma coisa que dar um tiro", sustenta. "E estamos a falar de pessoas que não vão sair", garante Chain Eisen, um religioso de kippa e barba que tirou licença sem vencimento do trabalho - não quer dizer qual - em Jerusalém. "Nós não vamos sair. Não há aqui nenhum tempo verbal no condicional. As pessoas prometeram que não vão lutar, mas o Governo está a impor-lhes um castigo."
Na casa onde antes morava um casal - uma casa grande e solarenga, com uma espécie de coreto coberto de hera no jardim, verde com flores distribuídas generosamente mas com cuidado, o Mediterrâneo a espreitar na janela panorâmica da sala - há agora mais de sete pessoas, incluindo Rhodius e Eisen. Noutros jardins, há tendas. No centro, há jovens a dormir em sacos cama no chão. Centenas de pessoas ter-se-ão infiltrado em Gush Katif apesar da proibição do Governo.
"Como é que um exército tão competente deixa infiltrarem-se tantas pessoas?", pergunta Eisen. "Só há uma resposta. Estão a desafiar a proibição de entrada a não residentes."
Zeevi, de 26 anos, veio de Jerusalém com a mulher e o filho de um ano e meio. São professores e estão de férias. "Conheço muitas pessoas que estão aqui e para isso deixaram os seus trabalhos, para o bem de Israel."
O som de guitarras tocadas por adolescentes sentados na relva, vestidos de cor de laranja berrante (a cor dos anti-retirada) é a banda sonora ideal para o discurso de Zeevi. "Vim aqui dizer a Sharon e ao mundo que amamos Israel, amamos a democracia, e acreditamos na força deste amor".
"Esperamos que o mundo perceba que não queremos ser exilados outra vez", diz. "Agora temos um país, deixem-nos viver em paz." Para Zeevi, não haverá resistência mas também não haverá evacuação. "Não vai haver violência. Vai ser muito difícil para todos, para nós, para os soldados, afinal, estamos todos do mesmo lado." E dispara uma comparação: "Os paramédicos acham que estão preparados, mas quando chegam ao local do acidente ninguém, nem eles próprios, sabem como vão reagir. Será o mesmo com os soldados. Eles virão e vão acabar por não conseguir". Zeevi tem a certeza. "Já tenho visto soldados a chorar..."
"Os árabes querem tudo, querem Jerusalém."
Há estrangeiros numa paragem de autocarro do colonato. Têm t-shirts amarelas a dizer "Americanos contra a expulsão de judeus".
Chegaram há pouco, já depois da proibição da entrada no bloco de colonatos a não residentes. "Falei com um comandante uma hora e meia e ele acabou por deixar entrar dez pessoas", conta Nava Klein, de Nova Iorque, uma artista gráfica que deixou a família preocupada e o marido à beira do divórcio para "fazer o que está certo". Em paz: "Se o soldado vier, leva mais cinco minutos a levar-me a mim, mais cinco minutos a levar outra pessoa, e assim por diante."
Bilha Nissein está no mesmo grupo apesar de ser israelita de Herzlyia. Este verão, trocou o Algarve do costume por Gush Katif. "Os rockets podem cair em todo o lado, até Telavive, e vamos retirar de Telavive? Os árabes querem tudo, querem Jerusalém." Acha não só que a retirada não vai acontecer como que esta vai ser uma época de viragem. "Se com a ajuda de deus tudo correr bem, vai ser o início dos judeus governarem Israel", sentencia.
Muitos residentes dizem estar à espera de um milagre. Invocam a relação entre os foguetes artesanais Qassam atirados pelos combatentes palestinianos - tubos de lata cheios de explosivos que caem onde calhar - e os mortos por causa deles. Seis mil rockets e nenhum morto. Diz Nava Klein, diz Bilha, diz Zeevi. "Seis mil rockets caíram em Gush Katif e ninguém morreu", é um mantra, uma garantia, uma prova para convencer os descrentes que o milagre há de vir. "Mesmo quando a espada está no nosso pescoço não devemos perder a esperança", conclui Nava.
Tiros em Kfar Darom
Um bando de crianças recebe-nos à porta de Kfar Darom, um colonato um pouco mais acima do bloco de Gush Katif que segundo a aprovação do Governo será um dos primeiros a ser evacuado. Mas afinal não é uma recepção - elas querem impedir a entrada do carro com os jornalistas. Barram literalmente o caminho da viatura. Ao argumento de que temos autorização do Governo, os miúdos encolhem os ombros: "Não reconhecemos autoridade ao Governo."
As crianças devem ter entre sete e dez anos, e algumas contam que vieram da Cisjordânia para ajudar Kfar Darom.
Um dos miúdos discute com o soldado. Soaram tiros - uma rajada, duas rajadas. E depois silêncio. São tiros de aviso aos árabes, explica um dos miúdos. Vai ter com o soldado e pergunta-lhe porque é que dispararam tiros de aviso, passando alguns minutos a discutir estratégia militar.
Depois está pronto para um pergunta. Sair de Kfar Darom? "Nem pensar, ainda hoje plantei uma árvore."

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