Para que serve uma maioria absoluta?
Com um líder popular e uma maioria absoluta, o PS obteve condições institucionais totais para pôr em prática o seu programa eleitoral. No entanto, esta força que os portugueses investiram em José Sócrates e no Governo parece estar a ser agora desperdiçada
Sabe-se hoje que as lideranças partidárias são absolutamente cruciais para determinar o voto dos portugueses. Tendo em conta que as divisões socioeconómicas que existem entre os portugueses têm pouca repercussão à hora de votar, os líderes têm um enorme peso no sucesso ou derrota eleitoral dos seus partidos em eleições. José Sócrates foi o líder que conseguiu o que mais nenhum líder socialista, com todas as credenciais de luta antifascista e de democracia (Soares), de competência governativa (Almeida Santos), ou mesmo de inovação programática (Guterres), tinha até agora alcançado. Com um líder popular e uma maioria absoluta, o PS obteve condições institucionais totais para pôr em prática o seu programa eleitoral. No entanto, esta força que os portugueses investiram em José Sócrates e no Governo parece estar a ser agora desperdiçada.
Existem três sinais de que tal está a acontecer: em primeiro lugar, a falta de rumo programático do Governo. Tendo em conta que em Portugal existem muito poucas instâncias de coordenação da acção governativa, o ministro das Finanças funciona como o principal elo de ligação de todas as políticas que envolvam investimentos e despesas no Governo, e numa altura de crise económica e orçamental a importância do ministro ainda se torna maior. A demissão do ministro é portanto sinal de falhanço do Governo, e em especial de quem o compôs, o primeiro-ministro.
Em segundo lugar, a falta de controlo do partido, e das solicitações de clientelismo partidário. Desde a tomada de posse do Governo tem-se assistido a alguns episódios de cedências ao partido, sendo a recente nomeação de Armando Vara para a Caixa Geral de Depósitos a mais ilustrativa do fenómeno. Em terceiro lugar, a ausência de estratégia política para as presidenciais. Percebe-se da novela Alegre-Soares que nem um nem outro foram candidatos que nasceram sob a égide da liderança Sócrates. Nessa medida, e como vários comentadores já assinalaram, uma vitória de Soares não servirá para consolidar a liderança de Sócrates, mas sim para a pôr em causa, dentro do partido e mesmo dentro das instituições.
No seguimento da constatação da fraqueza aparente de um governo de maioria absoluta nestas três frentes já todas as atenções estão (erradamente) viradas para a corrida presidencial. José António Saraiva escrevia no Expresso (07/08/2005) que só um pacto de regime entre o PS e o PSD sob a liderança presidencial poderá salvar o país. O Presidente da República portuguesa não tem poderes para governar. Mesmo no período mais presidencial da nossa democracia, com Eanes em Belém e seus respectivos primeiros-ministros, era o governo o centro das políticas públicas em Portugal. A nossa pertença à UE só veio reforçar a governamentalização do poder, tendência aliás que também se faz sentir noutras democracias semipresidenciais, em que o Presidente tem mais poderes tanto de um ponto de vista constitucional, político e organizativo.
Voltemos atrás e olhemos novamente para o Governo. Nas explicações da sua relativa inoperância é que poderá estar a chave de uma mudança positiva. Dois factores parecem-me importantes. Em primeiro lugar, o facto de este ser um governo de maioria absoluta que não conseguiu acabar com uma das suas frentes de batalha eleitoral - isto é, comparando com as maiorias absolutas passadas, esta é a única que não foi conseguida à custa dos partidos mais pequenos do seu bloco ideológico. Quando Cavaco Silva ganhou, o CDS passou a ser o "partido do táxi", com quatro deputados na AR. Sócrates venceu por maioria absoluta, mas a CDU manteve o seu voto e o BE saiu claramente reforçado. Portanto, a maioria absoluta que vem normalmente acompanhada de controlo do campo ideológico, neste caso da esquerda, não aconteceu. A primeira vítima foi a composição do Governo. Em vez de ser um governo coeso e com linha de rumo, foi uma composição ideologicamente ecléctica, fazendo lembrar o primeiro Governo de Soares em 1976. Mas - atenção - esse era de minoria.
Em segundo lugar, um conjunto de eventos tem servido para descredibilizar a posição do primeiro-ministro em Portugal. O abandono de Guterres primeiro, e Durão Barroso depois, seguido do desgaste permanente do lugar a que Santana Lopes se dedicou no seu breve mandato contribuíram para retirar dignidade e poder ao cargo. Mas não esqueçamos a acção de Jorge Sampaio neste processo. O facto de o Presidente ter decidido demitir um primeiro-ministro com maioria absoluta no Parlamento e que havia empossado quatro meses antes criou um precedente político. Não precisámos de esperar muito para ver as repercussões: à esquerda, Ferro Rodrigues já admitiu que, num contexto de crise económica forte, o próximo Presidente poderá demitir o primeiro-ministro, mesmo que este tenha uma maioria absoluta. Este é, aliás, um argumento que a esquerda utiliza contra o voto em Cavaco Silva.
Estes dois factores têm condicionado a actuação de José Sócrates, com um resultado de um comportamento pautado por indefinição, tanto em termos de rumo político, como de estratégia partidária. Indefinição na escolha dos ministros e no apoio a estes, indefinição na estratégia para os próximos combates eleitorais. A força eleitoral, em grande medida resultante da liderança de Sócrates, tarda em repercutir-se na governação por questões de competição ideológica e de desgaste institucional do cargo. No entanto, estes factores que explicam a aparente fragilidade do Governo são políticos e estão por isso ao alcance de serem modificados. A liderança do PS no Governo pode e deve definir a agenda partidária e política para dominar os acontecimentos, em vez de reagir aos mesmos. Apoiada na maioria absoluta que dá a paz institucional necessária à governação, a instituição governo e o cargo de primeiro-ministro poderão voltar a ganhar a credibilidade perdida. Investigadora, Instituto de Ciências Sociais