MORTE DE JOHN GARANG FRAGILIZA AINDA MAIS PROCESSO DE PAZ SUDANÊS

Antes do desaparecimento do carismático líder sulista, o processo de paz
no Sudão já estava minado por falta de vontade política, agendas duplas
e pouca representatividade na distribuição do poder. Por Cristina Roque

O processo de paz entre o Norte e o Sul do Sudão pode estar em risco de derrocada. Embora um regresso à luta armada seja improvável, os acordos que o Presidente, al-Bashir, e o sucessor de John Garang e novo líder do Movimento para a Libertação do Povo Sudanês (SPLM), Salva Kiir, tencionam honrar têm bases frágeis para manter a estabilidade no Sudão e na região.Mesmo antes da morte do vice-Presidente Garang, dia 1, num acidente, vários analistas desmistificaram a vontade política do Governo de Cartum em concretizar os termos dos acordos e sublinharam que o cenário de paz no Sudão não foi construído com transparência política e militar. Entre os factores que ameaçam sabotar a paz está a divisão ideológica, religiosa e racial que arrastou o povo do Sudão para uma guerra civil de 22 anos e o conflito em Darfur.
A guerra em Darfur começou em meados de 2003, quando dois grupos rebeldes se insurgiram contra o Governo por este não resolver a marginalização política em Darfur e não travar ataques de grupos árabes. Em resposta aos assaltos dos rebeldes, Cartum armou os janjawid. Os massacres destas milícias em Darfur foram recentemente classificados como genocídio pela Administração do Presidente dos EUA, George W. Bush.
O International Crisis Group (ICG), afirmou a 26 de Julho que um obstáculo preocupante relativamente ao processo de pacificação e à aliança que o Governo fez com o SPLM era a falta de convicção por parte de Cartum em manter a paz. O ICG acusa o Governo sudanês de assinar o acordo para desviar a pressão internacional sobre os acontecimentos em Darfur. Garang estava empenhado em tentar resolver o problema de Darfur, embora esta questão não fizesse parte do acordo de paz.
Numa conferência dada ao Congressional Black Caucus em 2004, Garang afirmou que "as sementes de genocídio estão imbuídas na estratégia de contra insurreição do Governo em Cartum. O que está a acontecer em Darfur é exactamente o mesmo que aconteceu no Sul do Sudão nestes últimos 21 anos".
Num artigo do jornal Los Angeles Times a 8 de Julho, Robert Collins, um historiador americano, nota que "os extremistas árabes estão à procura de oportunidades para pôr Garang de lado. Em Cartum eles mantêm-se silenciosos enquanto afiam as suas facas". Em Julho a revista Political Affairs e a televisão Al-Jazira confirmaram que um decreto religioso foi emitido contra Garang e o SPLM. "Vários líderes religiosos no Sudão lançaram uma fatwa para impedir que haja pessoas a aderir ao SPLM, e citam o Corão, para afirmar que um verdadeiro muçulmano não pode apoiar, cooperar ou juntar-se ao SPLM", cita o artigo. Continua dizendo que aqueles que formarem uma aliança com o SPLM estão a lutar contra Maomé.
A 9 de Janeiro o SPLM selou o Acordo de Paz Compreensivo (CPA) com o Governo sudanês no âmbito do qual John Garang foi nomeado vice-presidente do país três semanas antes de morrer. O CPA garante ao Sul acesso a cerca de metade da riqueza petrolífera do Sudão e estabelece que o Sul terá o direito a escolher a autodeterminação num referendo depois de um período de transição de seis anos. Os acordos reforçam também a liberdade religiosa e direitos políticos dentro do Sudão e acabam com o estado de emergência em que o Presidente, al-Bashir, tem governado. A imposição da lei islâmica (sharia), decretada em 1983 com provisões no código penal que fortificaram a discriminação a populações não-muçulmanas, foi levantada no Sul pelos acordos.
Embora o CAP seja um passo importante para a paz no Sudão, a transição de poder do governo em Cartum para o governo de unidade nacional ainda não aconteceu e consoante os arranjos da assembleia nacional não irá acontecer tão cedo. A Frente Nacional Islâmica (NIF) - que em 1989 chamou à guerra civil uma jihad (guerra santa) contra os infiéis cristãos e africanos do Sul - controla 52 por cento do poder no parlamento e nos postos ministeriais. O SPLM tem apenas 20 por cento de representatividade no parlamento e os restantes assentos são ocupados por vários partidos de oposição. O poder executivo continua nas mãos do Presidente, al-Bashir.
O SPLM não tem nenhum poder real sobre os militares, excluindo o seu próprio exército, uma vez que durante os últimos 16 anos as forças armadas nacionais foram totalmente purgadas e moldadas para se tornarem um instrumento de guerra do NIF.

Uma agenda dupla Enquanto o Governo negociava a paz com o SPLM, continuava a patrocinar as acções dos janjawid em Darfur, no Oeste do Sudão. As acções destas milícias, a mando dos militares do NIF, continuam sem ser controladas mesmo depois do Conselho de Segurança da ONU ter aprovado a Resolução 1556 em Julho de 2004 a pedir o seu desarmamento. Pedidos do Tribunal Penal Internacional (TPI) para a entrega dos líderes das milícias também não tiveram resposta. Um relatório da organização Refugees International de Março mostra que a pressão externa para acabar com os crimes em Darfur está a ter consequências sérias sobre a comunidade humanitária no terreno. "O ministro dos Negócios Estrangeiros, Mustafa Osman Ismail, advertiu recentemente mil colaboradores de ONG em Darfur que qualquer transmissão de nomes de responsáveis ao TPI levaria a uma ameaça directa contra a presença de estrangeiros no país (....); ameaçou também que o Darfur podia tornar-se num outro Iraque com detenções e sequestros", afirma o relatório.
A tomada de posse do Governo de coligação está prevista para dia 8 de Agosto. Ontem, a calma parecia ter regressado ao Sul do país e a Cartum, depois de três dias de violência. Mais de 130 pessoas morreram e 1400 foram presas pelas autoridades.

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