Redescobrir o génio de Antonin Artaud na Alemanha
Artaud - A Staged Life é o título da exposição que está no Museum Kunst Palast até 16 de Outubro. A mostra procura sublinhar a importância do escritor francês "enquanto artista moderno de pleno direito"
"Escolhi o domínio da dor e da sombra como outros o do esplendor e da multiplicação da matéria. Não trabalho na extensão de um qualquer domínio. Trabalho na duração única." Retiradas de Fragmentos de Um Diário do Inferno (Hiena Editora, 1991, tradução de Joaquim Afonso), as palavras do escritor francês Antonin Artaud (1896-1948) sintetizam uma vida tumultuosa, passada entre clínicas psiquiátricas, uma breve passagem pelo movimento surrealista e alucinantes viagens ao México - onde se foi encontrar com a tribo dos tarahumara - e à Irlanda. A biografia é ainda atravessada por uma incessante actividade criativa - como actor, poeta, ensaísta, artista plástico -, que resultou num corpo de obra único, fazendo deste autor um dos nomes maiores da cultura do século XX. A vida e a obra deste escritor são o ponto de partida da exposição Artaud - A Staged Life, recentemente inaugurada no Museum Kunst Palast, em Düsseldorf, Alemanha, onde está até 16 de Outubro. A mostra resulta de um projecto iniciado há cerca de 25 anos por um dos comissários da exposição, o artista francês Jean-Jacques Lebel, que em entrevista ao diário Le Monde revela uma conversa mantida então com Paule Thévenin - principal responsável pela edição dos manuscritos de Artaud -, na qual lhe terá dito: "Quero fazer uma exposição que seja uma visão artaudiana para vingar Artaud." Na mesma entrevista, conduzida por Philippe Dagen, Lebel explica ainda a decisão de se ter reconstituído uma célula de hospital psiquiátrico, incluída no percurso expositivo: "Quisemos acabar com a censura que recusa falar daquilo que perturba a racionalidade e as práticas culturais da actual sociedade de consumo." E acrescenta: "Artaud foi internado durante nove anos e sofreu 51 electrochoques. Ele serviu de cobaia."
Participou em 22 filmesO outro comissário da exposição é Dominique Païni, historiador de cinema e director da Fundação Maeght, em França, conhecida pelo seu museu de arte moderna. Um dos núcleos centrais da mostra é mesmo dedicado à presença de Artaud em diversos filmes. Em Düsseldorf são apresentados, pela primeira vez, excertos de todas as suas interpretações numa instalação multimédia, onde também se podem ler citações do filósofo francês Gilles Deleuze, cuja noção de "corpo sem órgãos" foi desenvolvida a partir da obra do autor de O Teatro e o Seu Duplo. Como actor, Artaud entrou em 22 filmes, entre os quais Napoleão (1927), de Abel Gance, no papel de Marat, ou A Paixão de Joana d" Arc (1927-28), de C. T. Dreyer, enquanto padre dissidente.
A voz de Artaud a ler o texto Para Acabar de Vez com o Juízo de Deus - uma gravação realizada em 1947, um ano antes da sua morte -, retratos de Man Ray, edições originais de livros, correspondência e desenhos constituem outros momentos de uma exposição que, segundo o director do Museum Kunst Palast, Jean-Hubert Martin pode contribuir para, no futuro, redefinir a memória do escritor na Alemanha, de modo a que Artaud "não só seja reconhecido meramente como um teórico do teatro de vanguarda, mas também enquanto um importante artista moderno de pleno direito".
Essa importância tem sido apontada por um vasto conjunto de autores ao longo das últimas décadas. Para além de Paule Thévenin e Gilles Deleuze, devem destacar-se Arthur Adamov, Jacques Derrida, Évelyne Grossman - editora dos recentes 50 Dessins pour Assassiner la Magie e Oeuvres, ambas publicadas pela Gallimard - e Philippe Lacoue-Labarthe, de quem Bruno Duarte traduziu para as Edições Vendaval Duas Paixões (Artaud, Pasolini): "Escrever é dizer como se está morto. E isso é o próprio pensamento, que não consiste em espantar-se pelo motivo de que eu sou, mas sim em ser agitado pelo motivo de que eu já não fui. A morte é algo como o imperativo categórico do pensamento, da literatura. Hegel transformou essa necessidade num sistema. Mas Artaud proferiu-a na mais extrema dor, e isso tem o nome de poesia."
É essa dor extrema transmitida pela obra de Artaud agora visível em Düsseldorf. Uma exposição que é também uma hipótese formulada por Jean-Jacques Lebel: "O sofrimento inumano dos electrochoques forçaram Artaud a resistir e a converter este sofrimento numa linguagem inventada - porque a sua dor estava para além de toda a linguagem comum."
Artaud - A Staged LifeDÜSSELDORF Stiftung Museum Kunst Palast. Ehrenhof 4-5. Até 16 de Outubro.
www.museum-kunst-palast.de