Salazar
Há uma espécie de sortilégio de que parecem sofrer os investigadores que entram no Arquivo Salazar, aberto ao público há dez anos. Nunca mais de lá querem sair. O fundador e principal ideólogo do Estado Novo, que guardava tudo, "facilitou a vida aos historiadores", afirma uma investigadora, enquanto outra diz mesmo que o arquivo "é uma cilada". Agora, já não é preciso ir à Torre do Tombo para ter uma ideia deste universo. Basta ligar o computador
Quer saber o que é que Salazar fez no dia em que nasceu? Pode parecer um fétiche um bocado deslocado, mas é o que permite (e muito mais) a colocação no site do Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo da série Diários de António de Oliveira Salazar (1899-1970), que foi chefe do Governo português entre 1932 e 1968. Os diários fazem parte do Arquivo Oliveira Salazar que abriu ao público há dez anos - a 27 de Julho -, passados 25 anos sobre a morte do fundador e principal ideólogo do Estado Novo.O projecto dos diários na rede ainda não foi oficialmente apresentado, mas desde o dia 1 de Julho que estão disponíveis 21.595 imagens. Os diários são as célebres agendas oficiais do Presidente do Conselho, que ilustram "dia-a-dia" e "hora-a-hora" - diz a Torre do Tombo no site - a actividade pública e privada de Salazar, entre 1 de Janeiro de 1933 e 6 de Setembro de 1968.
A disponibilidade dos diários on line, até agora desconhecida dos investigadores e historiadores, é saudada como "muito importante". É o que diz António de Araújo, que investiga no Arquivo Salazar a génese da Constituição de 1933. "No dia 5 de Janeiro de 1933, às 10h30, esteve com o seu colaborador próximo Leal Marques; depois com o secretário-geral dos Negócios Estrangeiros, o embaixador Teixeira de Sampaio. O que é que se passaria aqui como movimento diplomático? É preciso saber mais alguma coisa para descodificar isto." "Fundamental" e "fascinante" são adjectivos que se sucedem à medida que o investigador consulta através da Internet a agenda - "é a mesma coisa que daqui a uns anos se pudesse saber a agenda de Cavaco", o que ele andava a fazer hora-a-hora.
"Seria um passo importante proceder à transcrição dos diários, devido à letra peculiar e de difícil leitura de Salazar, que passa a escrever pessoalmente as agendas em vez da secretária a partir de 1939", diz Ana Barros, que faz parte do Projecto Torre do Tombo On Line. "Tinha uma letra diabólica, como dizia a escritora Fernanda de Castro", comenta António de Araújo.
A estratégia de contra-ataque na agenda
A primeira vez que a historiadora Fátima Patriarca consultou documentos do Arquivo Salazar foi em 1992, antes da sua abertura ao público. Nessa altura, os documentos só a título excepcional podiam ser consultados e demoravam quase um ano a chegar à mão dos investigadores.
A segunda experiência quase que se poderia dizer que foi mais traumática. Quando já tinha escrito quase todo o livro Sindicatos contra Salazar. A Revolta do 18 de Janeiro de 1934 abriram ao público, sucessivamente, o arquivo da PIDE-DGS, a polícia política do regime anterior ao 25 de Abril, e o de Salazar. Fátima Patriarca decidiu que não podia ignorá-los: "Passo mais 11 meses na Torre do Tombo a consultar os interrogatórios dos revoltosos depois de terem sido presos. Outra consulta importante foi a agenda de Salazar. Este movimento tinha sido seguido por Salazar de uma maneira sistemática, que definiu uma estratégia de contra-ataque. A agenda veio confirmar ao pormenor a estratégia, nomeadamente através das reuniões que Salazar teve com o director do jornal O Século, Pereira da Rosa. O jornal muda a sua política editorial."
A reunião entre os dois foi na noite de 12 de Janeiro. "A cereja em cima do bolo é dada pela agenda", diz Fátima Patriarca, investigadora do Instituto de Ciências Sociais (ICS). Para o estudo do Estado Novo, o arquivo Salazar "é a trave mestra", continua.
No ano passado, o Arquivo Salazar teve 2035 consultas, enquanto o da PIDE/DGS chegou às 5094 (no total foram 83.033 consultas). Lurdes Henriques, da Torre do Tombo, diz que o Arquivo Salazar é mais usado por historiadores e que o da PIDE continua a ser consultado por pessoas que querem ver os seus processos políticos: "Ainda esta semana estiveram cinco ou seis pessoas vindas do estrangeiro. A PIDE desperta um interesse muito grande. O Arquivo Salazar desperta um interesse inferior mas mesmo assim pode-se dizer que é considerável. O Arquivo Salazar é muito mais científico. Já vi professores catedráticos a consultar o arquivo de Salazar e não vi nenhum no da PIDE. O Arquivo Salazar permite leituras muito sofisticadas."
6000 remetentes na correspondência particularO Arquivo Salazar "foi uma janela tremenda", diz o historiador Valentim Alexandre, do ICS, que prepara um livro sobre a política colonial do regime, nomeadamente sobre a resistência à descolonização a partir de 1945. A sua abertura "foi um serviço à historiografia e à cultura", porque quem quiser fazer história política "não pode fazer um trabalho completo" até à morte do Presidente do Conselho sem o arquivo. Uma das coisas "maravilhosas" que aconteceu ao arquivo foi o inventário feito por Madalena Garcia e publicado em 1992 - "sem ele não se chegava a lado nenhum", continua Valentim Alexandre.
O Arquivo Salazar está guardado em 1177 caixas e tem documentos acumulados entre 1926 e 1968, embora haja documentos datados de 1908. O conjunto mais extenso do arquivo é a Correspondência Oficial, que integra documentos de todos os ministérios.
A Correspondência Particular, com cerca de 6000 remetentes portugueses e estrangeiros, tem um conteúdo político e pessoal. Há também, entre outros núcleos, os Papéis Pessoais, que vão desde a correspondência com a família até às despesas com Santa Comba Dão, a sua propriedade particular. No meio disto tudo, existem vários "originais e diferentes versões de documentos produzidos pelo próprio", escreve a arquivista Madalena Garcia no livro Arquivo Salazar, Inventário e Índices
Relativamente à informação dos vários ministérios, Madalena Garcia lembra que Salazar exerceu múltiplas funções e actividades políticas que estão espelhadas no arquivo. Além de ter começado a sua carreira no Governo como ministro das Finanças em 1926 e depois também das Colónias em 1930, Salazar acumulou a Presidência do Conselho com as pastas das Finanças (1928-40), da Guerra (1936-44), dos Negócios Estrangeiros (1936-47) e da Defesa (1961-62).
"O arquivo é uma espécie de filtro dos outros arquivos. Encontra-se a documentação a que Salazar teve acesso e é possível saber quando a leu ou não. Há toda uma semiótica que se pode construir", diz Valentim Alexandre. "É um fervilhar de intriga, movimentações, manipulações, que por vezes têm uma importância muito grande naquilo que se passa", continua.
É o caso de uma carta escrita por Ernesto Vilhena, administrador da Companhia de Diamantes de Angola, que se queixa de um romance de Castro Soromenho, Viragem, que aborda as condições de vida na Lunda. O episódio acaba com Salazar a mandar fechar a editora.
Serviços secretos e D. Maria de Jesus
"Está lá tudo. Dá a ideia que Salazar não destruía um papel", comenta Valentim Alexandre. É possível encontrar documentação sobre o ultramar em todas as séries e colecções. O historiador viu cerca de 300 caixas de documentos. Se o fecho da editora só é possível perceber no Arquivo Salazar, o mesmo acontece com várias outras coisas. "Em meados dos anos 60, Salazar tinha uma rede paralela de contactos que o ligava a serviços secretos europeus", conta o historiador. Eles telefonavam directamente à governanta D. Maria de Jesus para marcar os encontros, porque para tais contactos Salazar não confiava em ninguém, nem no chefe de gabinete, nas Forças Armadas ou na PIDE. "A ideia de Portugal estar sozinho na diplomacia internacional é completamente errada. Só formalmente é que está." Por isso, Valentim Alexandre diz que "há várias políticas coloniais a funcionar" ao mesmo tempo.
A jornalista e investigadora Helena Matos, autora dos livros Salazar- A Construção do Mito e Salazar - A Propaganda, concorda com a ideia que o Arquivo Salazar é o "reflexo" de outros arquivos. "Cheguei ao Arquivo Salazar para chegar ao Secretariado de Propaganda Nacional (SPN). Está lá correspondência com o SPN porque era Salazar quem aprovava as contas. Há também a correspondência com António Ferro sobre os assuntos mais polémicos do SPN. O acesso ao Arquivo Salazar supre, de alguma forma, o não acesso aos outros arquivos, como o do Ministério da Educação."
Através do arquivo, na opinião da investigadora, é possível fazer um corte transversal e ver aquilo que está a acontecer na vida portuguesa - "é o filme que não se fez". "O que vai às mãos dele pode ser um assunto de extraordinária importância, como os americanos nas Lajes, ou o detalhe mais ínfimo. Como uma carta a dizer que aquele homem não pode ser chefe de secretaria porque é da oposição, tem uma amante e a mulher pinta-se."
A violência de Cerejeira contra a Constituição de 33Neste momento, Helena Matos já leu milhares de cartas escritas por 1204 mulheres que fazem parte, sobretudo, do núcleo Correspondência Particular (e uma ou outra de outros núcleos), que mostram a precariedade do seu estatuto: "Era um país em que as mulheres tinham uma vida mais difícil. Esse país delicioso, com mães estáveis, nunca existiu."
Através dos Diários, António de Araújo, que está a fazer o doutoramento sobre a génese da Constituição de 1933, conseguiu perceber a importância que o professor de Direito de Coimbra Domingos Fezas Vital tem na elaboração da Lei Fundamental do Estado Novo. Em 1933, durante um determinado período, recebe-o todas as semanas. "Em qualquer país civilizado, as agendas oficiais de um chefe de Estado já estariam publicadas."
O principal autor da Constituição de 33 "é o próprio Salazar". Todas as versões da Constituição estão no arquivo e "não estão em mais parte nenhuma". São uma dezena e Salazar consultou, informalmente, sete ou oito notáveis - "utilizou sempre esse método de trabalho". "A carta mais violenta que se encontra no arquivo contra o projecto da Constituição de 33 é do cardeal Cerejeira", que foi cardeal Patriarca de Lisboa entre 1929 e 1971.
Nos tempos que passa na Torre do Tombo, António de Araújo faz algumas sondagem noutros núcleos. "A única coisa que não vi são ordens directas à PIDE. O lado mais sombrio do regime não está no arquivo. Desengane-se quem acha que encontra uma ordem para matar o general Humberto Delgado. O material mais sensível era tratado pessoalmente." Mas o que é possível fazer, por exemplo, no núcleo Papéis Pessoais, é a nosografia do ideólgo do Estado Novo, a descrição das doenças de Salazar.
A sedução do ditadorO investigador receia que estes papéis possam vir a sofrer danos perante a crescente atracção pela memorabilia em torno de Salazar. "Há uma certa nostalgia por coisas pessoais de Salazar. A pressão sobre o manuseamento devia ser menor", diz António Araújo, acrescentando que muitos destes documentos já deviam ter interessado as editoras. "Tudo o que é livro com Salazar na capa vende."
Para Araújo, este é o mais importante arquivo para o estudo do Estado Novo: "É impossível fazer um trabalho sério sobre qualquer aspecto do Salazarismo sem ir ao Arquivo de Salazar", diz o investigador. "Não se pode comparar com a importância do Arquivo de Caetano. O de Salazar é mil vezes mais importante. É impressionante, Salazar guardava tudo. Em 40 anos, toda a vida do Estado português está ali. A máquina administrativa também era mais simples."
Todos os investigadores que entram no Arquivo Salazar sofrem de uma espécie de sortilégio. "Apaixonei-me por aquilo", diz Valentim Alexandre. "Salazar facilitou a vida aos historiadores. É muito mais fácil estudar Salazar do que a I República.", afirma Helena Matos.
Para além do prazer de lidar com documentos históricos, que é possível descobrir em quase todos os arquivos, comenta Helena Matos, o Arquivo Salazar é um universo: "Temos quase a noção que estamos dentro da realidade, a sensação do realizador de cinema. Se as pessoas soubessem o que estão perder..." Mas, sublinha, falta ainda fazer a história do próprio arquivo, como foi construído.
O arquivo "é uma cilada", reconhece a investigadora Rita Almeida de Carvalho, a fazer o doutoramento sobre as relações Estado-Igreja. "Aquilo foi feito para nós. Claro que ele precisava das coisas para trabalhar, mas tenho a noção que ele sabia que estava a fazer história, a prepará-la. Não se imagina o pormenor e a argúcia com que são discutidas as negociações da Concordata em 1940. No arquivo, fica tudo completo."
Instrumento do seu minucioso despotismoO politólogo Manuel de Lucena não se espanta com estas descrições que falam de um arquivo onde está tudo, de um completo universo: "Tem a ver com o seu minucioso intervencionismo e com o seu minucioso despotismo, cuja especialidade era a repressão preventiva. Não deixar nascer o que ele achava que podia vir a ser mau. Não fomos governados durante 40 anos por um medíocre. Conhecia o país como poucos e era muito inteligente."
Porque é que o Salazar fez um arquivo? Para além de ser um instrumento político, Lucena diz que, provavelmente, Salazar era também um homem "curioso como uma tia" e o arquivo "devia dar-lhe uma enorme sensação de poder". Mas Salazar tem igualmente um lado em que "é um intelectual". "Ele quer deixar o arquivo para propiciar que se escreva a história do regime, a história dele."
Manuel de Lucena, autor do livro O Salazarimo, primeiro volume da obra A Evolução do Regime Corporativo Português, diz que está a pensar ir ao arquivo pela primeira vez para aprofundar o ensaio biográfico sobre Salazar publicado no Dicionário de História de Portugal, coordenado por Maria Filomena Mónica e António Barreto: "Sou tentado a lá ir, mas tenho medo de não conseguir sair."
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