"Não dei um nome aos quarks; o erro foi meu"
Nasceu em Telavive há 80 anos e, se os planos familiares se cumprissem, ter-se-ia dedicado à fábrica de bombas de água da família. Mas não. O núcleo do átomo fascinou tanto Yuval Ne"eman que ele desvendou alguns dos seus mistérios e se envolveu no programa nuclear israelita.
Podia ter ganho o Nobel da Física, em 1969, mas o prémio foi para outro, ainda que ele tenha tido a ideia - dos quarks - primeiro. Só não lhes deu o nome. O físico português Gaspar Barreira, presidente do Laboratório de Instrumentação e Física Experimental de Partículas, em Lisboa, refere que Yuval Ne"eman faz poucas declarações sobre o assunto. Ao PÚBLICO, Ne"eman diz que sentiu "decepção". E pensa que o Nobel não aconteceu por falta de um lobby a apoiá-lo.
PÚBLICO - O que sente em relação ao Nobel da Física, que nunca recebeu, apesar de ter previsto a existência dos quarks?Yuval Ne"eman - Decepção. Vários livros dizem que o comité Nobel cometeu um erro. Na biografia de [Richard] Feynman, de John e Mary Gribbin, há uma página sobre mim e o Nobel. Li um livro de um húngaro sobre os prémios Nobel, [István] Hargittai, que acredita que não me deram o prémio porque eu vinha de fora. "Um militar, o que sabe ele destas coisas?"
Tive muito tempo, não para esquecer, porque não esquecemos estas coisas, mas sobrevivi. O que não gostei, e escrevi a dizê-lo à Fundação Nobel, foi do livro que todos os anos publicam sobre os premiados. Há sempre um discurso do relator a explicar por que se deu o prémio a alguém e um discurso do premiado. Gell-Mann recebeu o prémio mas não enviou um discurso. Deve ter-se sentido mal. O relator [Ivar Waller] disse que a mesma descoberta tinha sido feita por mim algures mais tarde. Mas se olharmos para as datas, vemos que é ao contrário. Publiquei primeiro a descoberta - o Eightfold Way [o modelo matemático da estrutura das subpartículas no núcleo dos átomos].
Fiz a descoberta em Outubro de 1960 e dei o rascunho ao professor Salam no início de Novembro, quando voltou dos EUA. A revista recebeu-o em Fevereiro de 1961. Gell-Mann acabou o artigo em Dezembro de 1960 e enviou-o para publicação em Março de 1961. Depois, retirou-o porque ouviu rumores de que havia resultados experimentais que não coincidiam. Reescreveu-o, de forma a não se comprometer, apresentando dois modelos. Um era igual ao meu, a que ambos chegámos de maneira independente. Por isso, refere-se ao meu artigo publicado e ao rascunho dele que não tinha sido publicado. O outro modelo alternativo era do japonês Sakata. Gell-Mann voltou a enviar o artigo seis meses depois.
Depois disto, a outra coisa importante foi a descoberta dos quarks. A ideia surgiu-me e publiquei-a primeiro, excepto o nome. A revista recebeu o artigo em Fevereiro de 1962. Gell-Mann chegou aos quarks no final de 1963. Por isso, escrevi uma carta zangado ao homem da Fundação Nobel: é com eles se queriam ou não dar-me o Prémio, mas não concordo que tenham informação errada. Nunca recebi uma resposta.
Por que acha que não lhe deram o Nobel?
Não sei. Acho que é porque não tinha um "lobby" a apoiar-me.
O seu primeiro artigo propunha um modelo matemático que explicava como as partículas estão organizadas?
A melhor comparação é com a tabela periódica de Mendeleev. Havia tantos elementos químicos, ninguém sabia quais faltavam. Mendeleev viu o quadro geral e disse: "Falta isto, falta aquilo". No meu caso, era preciso adivinhar a estrutura matemática, e descobri a que encaixava. Há cerca de 100 partículas e todas encaixavam, e pude mostrar exactamente quais faltavam (que massa, que carga e outras propriedades). No ano seguinte, vi qual poderia ser o modelo que daria este tipo de quadro. Não dei um nome aos quarks - o erro foi meu. Chamei-lhes apenas objectos mais fundamentais.
Antes de se tornar cientista, estudou engenharia mecânica...
Acabei o liceu aos 15 anos e a ideia era tornar-me engenheiro, porque o meu avô criou uma fábrica em Israel de bombas de água. O meu pai fez o mesmo e a ideia era que eu fosse o engenheiro. Na verdade, interessava-me mais por matemática e ciências, ainda não por física. Inventava em matemática todos os tipos de coisas durante o liceu. O Technion [o Instituto de Tecnologia de Israel, em Haifa] não queria receber-me aos 15 anos. A idade mínima era de 16 anos.
Durante esse ano, trabalhei na fábrica do meu avô e juntei-me à Haganá [organização de defesa judaica, precursora das Forças de Defesa de Israel], que foi o início da minha carreira militar. Entre 1940 e 1941, ouvia as palestras nocturnas de um professor da Universidade de Jerusalém, que ia a Telavive falar de física moderna. Isso fez-me pensar em física. Comprei o livro de [Arthur] Eddington, The Nature of the Physical World, que sei de cor. Enquanto estudava no Technion, entre 1941 e 1944, estive mobilizado metade do tempo em operações da Haganá. No final do Technion, fui para a escola de oficiais da Haganá. Mas em 1946 trabalhei na fábrica e inventei alguns modelos de bombas, que ainda funcionam. Mas em 1947 fui mobilizado de novo.
Como se envolveu nestas actividades militares e políticas?
Venho de uma família sionista, que foi muito cedo para Israel. Três dos meus avós nasceram em Israel, o outro foi para lá em criança.
Participou na Guerra da Independência, em 1948.
Combati no terreno. Era o segundo-comandante de um batalhão. Estive envolvido na abertura da estrada para Jerusalém, até ao fim de 1948. Depois fui combater para o Sul o exército egípcio, que nos invadiu. Em 1949 acabou a Guerra da Independência e, em Janeiro de 1950, fui transferido para o alto comando do exército. [Yitzhak] Rabin era chefe de operações e eu o seu adjunto. Planeava várias operações, até meados de 1951.
Mas decidi fazer física e pedi ao chefe de Estado-Maior israelita para sair. No dia seguinte, sugeriu-me ir para a Escola Superior de Guerra, em Paris. Não tínhamos pessoas formadas profissionalmente, fui para França e adiei a física. Quando voltei, fui nomeado director do Departamento de Planificação das Forças de Defesa de Israel. Ben-Gurion [o primeiro primeiro-ministro de Israel], ouviu falar de mim e, em Setembro de 1952, escreveu no seu diário uma palavra hebraica que significa "génio". Decidiu nomear-me chefe da Planificação. Considero o trabalho no Planeamento o mais importante da minha vida.
Por que diz isso?
Porque preparava planos para o caso disto ou daquilo acontecer. Um destes cenários aconteceu 15 anos depois, com a Guerra dos Seis Dias. A outra parte era planear um país novo. Quando acabei o liceu, havia 400 mil judeus no país; naquela altura, 600 mil. A questão era: quantos mais virão? Tinha de planear o exército. Havia quem dissesse que devia ser um pequeno exército profissional. Eu pensava que, com o número de árabes à nossa volta, que eram muitos mais do que nós, não podíamos ter apenas um pequeno exército - por isso, desenvolvi a ideia de mobilização completa. Desenvolvi o sistema actual de mobilização total. Quando concebi isto, a questão era saber quantas pessoas estariam no país daí a 20 anos, 30 anos. Isto foi entre 52 e 55. Construí um modelo do país para daí a 25 anos. O resultado está 95 por cento correcto.
Diz que teve quatro carreiras em paralelo, a de engenheiro mecânico, militar, cientista e político. Como cientista, colocam-no no mesmo patamar de Einstein, porque, no início dos anos 60, propôs um modelo para arrumar um zoo imenso de partículas subatómicas e percebeu que, no núcleo atómico, dentro dos protões e neutrões, havia partículas ainda mais elementares, os quarks. Como militar, fez a guerra, esteve nos serviços secretos e na planificação de um país novo. Mas a física puxava-o.
Judeu, combateu palestinianos e os vizinhos árabes, acabando por fazer o doutoramento com um físico muçulmano, em Londres: o paquistanês Abdus Salam (Nobel em 1979). O que compreendeu sobre as partículas elementares, tal como o americano Murray Gell-Mann, tornou-o um físico reputado. Os dois publicaram artigos e um livro juntos. Só que o Nobel foi para Gell-Mann, em 1969. Foi o americano quem inventou o nome quarks, que viu numa frase do livro Finnegans Wake, de James Joyce ("three quarks for Muster Mark"). Do fim dos anos 70 até aos 90, envolveu-se na política: criou o partido de direita Tehiya, foi ministro da Ciência e da Energia. E criou a Agência Espacial de Israel, em 1983.
Esteve em Portugal no fim de Julho, aproveitando a Conferência Europeia de Altas Energias da Sociedade Europeia de Física. Foi a segunda vez. A primeira fora em 1972, quando, a caminho dos EUA, onde trabalhava, na Universidade do Texas, passou por Portugal para discutir questões com um seu ex-aluno de doutoramento, o físico-matemático Rui Vilela Mendes, agora do Centro de Matemática e Aplicações Fundamentais, em Lisboa.