Ministério da Educação mandou destruir livros de "índole fascista" em 1974
A seguir ao 25 de Abril, o Ministério da Educação e Cultura (MEC) ordenou a "destruição" de livros que fizessem lembrar o regime fascista. Trinta anos depois, o PÚBLICO reconstitui um dos "autos de destruição", em que se queimaram 51 livros e se arrancaram folhas a outros 41. Alguns professores fizeram os autos mas guardaram os livros, que têm vindo a entregar. Ministros e secretários de Estado da época do despacho e dos autos-de-fé dizem que não sabiam de nada. Investigação de Adelino Gomes
"Aos dezasseis de Julho de mil novecentos e setenta e cinco perante o escrivão do presente auto, Arnaldo Ferreira da Cunha, e Maria do Céu Faria Fernandes da Cunha e Adelaide de Jesus Ferreira Simões, todos professores da Escola Primária de Marrazes, concelho e distrito de Leiria, procedeu-se à destruição, pelo fogo, dos seguintes livros, abaixo indicados e inscritos na lista A:"Escrita à mão, numa folha de papel azul de trinta e cinco linhas, esta frase ocupa as primeiras 11 linhas das quatro páginas de um "Auto de Destruição", pelo fogo, de 92 livros - 51, por inteiro; e 41, das folhas, previamente arrancadas, que continham "uma frase dos ex-Presidentes do Conselho". Estes últimos livros constam de um segundo rol, designado pelo escrivão como "lista B".
Ambas as listas foram fornecidas pela Direcção-Geral da Educação Permanente (DGEP) aos encarregados das bibliotecas populares, geralmente professores de escolas primárias às quais aquelas estavam anexas.
Seguindo as instruções da circular nº 1/75 de 26 de Março de 1975, daquela Direcção-Geral, o escrivão enumera e indica o título e autor de cada um dos livros e informa que "após verificadas as referidas destruições pelo fogo, foram feitos os devidos abates no livro de inventário da Biblioteca nº 393", pertença daquela Escola Primária.
Do auto "serão enviadas cópias às Repartições interessadas", informa o auto, nas linhas que antecedem as ressalvas, a data e as assinaturas das testemunhas.
Trinta anos depois, tanto o escrivão como Maria do Céu, sua mulher e uma das duas testemunhas, aceitaram recordar o modo e as circunstâncias em que procederam ao acto, de que o PÚBLICO tomou conhecimento durante uma visita ao Museu Escolar de Marrazes - um espaço inaugurado em 1997 e onde hoje se encontram mais de 33 mil peças que narram a história da Educação/Instrução em Portugal, durante o regime de Salazar e Caetano (ver pág. 6).
"Para mim era uma ordem. E a primeira coisa que se faz quando há uma ordem é cumpri-la, mesmo não se estando de acordo com ela", diz Arnaldo Ferreira da Cunha, sentado num sofá na sala de jantar da residência, em Leiria. À data do auto, o professor, hoje com 74 anos, levava uma quinzena e meia de docência naquela mesma escola, onde permaneceria até à aposentação, em 1992.
O casal, bem como o terceiro professor que assina o documento, Adelaide Simões (esta num contacto telefónico), dizem que não guardaram na memória pormenores do acto. Arnaldo e Céu Cunha, porém, aceitaram mostrar o local onde se cumpriu a ordem ministerial, nas traseiras da antiga escola, situada junto da Mata Nacional, a três quilómetros de Leiria.
Os dois professores seguiram escrupulosamente as instruções da Direcção-Geral, mas tiveram a preocupação de destruir os livros "fora da vista dos alunos". Escolheram por isso uma hora a que mais ninguém se encontrava nas instalações. A fogueira foi ateada com folhas de jornal trazidas de casa, misturadas com jornais e revistas da Mocidade Portuguesa, no recreio de terra batida da escola masculina, hoje ainda em funcionamento.
Decisão tomada em Outubro de 1974
Apesar de executada já depois do 11 de Março, a ordem de destruir "livros e revistas de índole fascista" foi dada escassos meses após o 25 de Abril de 1974, num despacho assinado pelo secretário de Estado da Orientação Pedagógica, Rui Grácio (já falecido).
O despacho, com data de 17 de Outubro de 1974, determinava às Direcções-Gerais dos Ensinos Básico e Secundário que elaborassem uma circular "ordenando a destruição das publicações com esse carácter, depois de arquivados um exemplar, pelo menos, de cada revista e alguns livros a seleccionar, que fiquem como documento ou testemunho de um regime".
O teor do despacho levanta dúvidas à direcção do Distrito Escolar de Leiria, que em ofício dirigido ao Director-Geral da Educação Permanente (DGEP) pede "orientação" sobre o critério de escolha dos livros e a organização do inventário de cada biblioteca "depois de efectuada a operação". A Direcção Escolar pretende que haja "uniformidade de procedimento", em vez da "diversidade de actuação" que resultará, inevitavelmente, se a escolha dos livros ficar ao critério dos professores encarregados das bibliotecas.
Em resposta, a DGEP informa que "muitos foram os serviços" que solicitaram esclarecimentos"sobre a forma de agir" e manda que as bibliotecas populares aguardem instruções, pois estão "a ser revistas todas as obras distribuídas" pelas bibliotecas populares.
Duas semanas depois do 11 de Março (o exemplar a que tivermos acesso exibe a data de 26, dia da posse do novo Ministro da Educação do IV Governo, major Emílio da Silva, mas pode trata-se da data de entrada do documento) a directora-geral da Educação Permanente, Maria Justina Sepúlveda Fonseca, anuncia aos encarregados das bibliotecas, através da circular nº 1/75, que "é chegada a oportunidade" de se passar, "com urgência", ao "saneamento dos livros que não reúnam condições ideológicas, literárias ou técnicas para continuarem a ser dados à leitura".
A circular aponta ao pormenor o modo de procedimento dos encarregados na execução da ordem. Para tanto, envia, em anexo, duas listas com os nomes das obras e dos autores (cerca de uma centena e meia) a inutilizar: a lista "A", cujas obras serão objecto de destruição "pela forma que [o encarregado] achar mais conveniente"; e a lista "B", com livros a que deverá ser cortada "a página que contém uma frase dos ex-presidentes do Conselho" da ditadura, Salazar e Caetano.
"Dessa destruição", que deverá ser feita "perante duas testemunhas", será lavrado "auto", em duplicado. Dele deve constar o nome das obras "inutilizadas" e "o modo como foram", arquivando-se um exemplar no processo da biblioteca e enviando o outro à DGEP. Os livros de que se arrancarem folhas "continuam, depois disso, a figurar na biblioteca".
"Impensável", censura
Vitorino Magalhães Godinho
O historiador Vitorino Magalhães Godinho (VMG) e o coronel José Emílio da Silva - dois dos três ministros que tutelaram o Ministério da Educação entre os nove meses que medeiam a data do despacho e a execução do "auto de destruição" nos Marrazes (o terceiro, o oficial do Exército Manuel Rodrigues de Carvalho, faleceu em 1999) - afirmam desconhecer em absoluto o despacho de Rui Grácio e as instruções subsequentes para "inutilizar" os livros constantes das duas listas.
VMG, que tutelou a Educação Cultura no II e em parte do III Governo Provisório (18 de Julho a 29 de Novembro de 1974), assume que autorizou a destruição de livros de propaganda do regime acabado de depor, mas apenas daqueles de que existiam milhares de exemplares em armazém no Ministério, que funcionava "num apartamento adaptado, sem espaço nem segurança".
Com a queda do regime, esses livros "tinham perdido razão de ser, não interessando a não ser como fontes para o estudo da época", até porque estava já a funcionar uma comissão de reforma dos programas, presidida por Mário Dionísio. "Não íamos vendê-los a peso. Mas comigo não foi combinado mais nada", garante.
O antigo ministro acha "impensável" que o seu secretário de Estado não lhe tenha mostrado o despacho. "Por mim, nunca poderia aceitar essa linguagem", diz.
Responsável do ministério durante os IV e V Governos Provisórios (23.3 a 10.9.74), o coronel António Emílio da Silva mostrou-se surpreendido quando soube da informação pelo PÚBLICO: "É uma novidade absoluta para mim. Nunca ninguém me falou em tal. E eu tenho boa memória".
Igual surpresa manifestou António Avelãs Nunes, que integrou com Rui Grácio a equipa da Educação durante os III, IV e V Governos Provisórios. "Nunca foi discutido o assunto. Estou a ouvir falar disso pela primeira vez", disse.
O antigo secretário de Estado da Administração Escolar dos II, III e IV Governos Provisórios, José Manuel Prostes da Fonseca, recorda-se "de se falar no assunto, que deu polémica no Ministério, na altura". A questão "levantou algumas dúvidas, pois era uma matéria extremamente delicada" e "dividiu opiniões "mesmo entre os aderentes ao 25 de Abril".
Prostes da Fonseca pensa, aliás, que não só ouviu falar como terá participado "em duas ou três conversas". Mas ficou, "naturalmente", fora do modus faciendi.
Retém a ideia de que a iniciativa "terá nascido na Direcção-Geral do Ensino Básico [de que era responsável Rogério Fernandes com quem o PÚBLICO não conseguiu falar ao longo de toda a semana], e que foi tratada, naturalmente, com o secretário de Estado da Orientação Pedagógica". Mas garante que o assunto nunca chegou a ser debatido com os responsáveis do MFA, com quem a equipa do Ministério da Educação, dirigida por Vitorino Magalhães Godinho, se encontrou por mais de uma vez para discutir os temas quentes do ensino, na altura.
A "surpresa" Rui GrácioMesmo Sottomayor Cardia, que denunciou na RTP, em 1976, a realização de autos de fé durante o período revolucionário, nunca nomeou Rui Grácio. Embora não fosse desconhecida, também, pelo menos por um dos autores "saneados", José Hermano Saraiva, que a classifica como "um crime como os dos tempos de D. Manuel", a própria ocorrência do facto era até agora tida, por muitos pedagogos, como mais uma entre várias calúnias, nem sempre comprovadas, que correm sobre o período revolucionário (ver Reacções).
Rui Grácio, personalidade então ligada ao Partido Socialista (de que viria mais tarde a afastar-se), gozava de enorme prestígio académico, profissional e político. Grande amigo de Vitorino Magalhães Godinho, ele foi o único secretário de Estado que o novo ministro escolheu directamente, conservando os restantes elementos da equipa que encontrara do titular anterior, Eduardo Correia.
Tanto Emílio da Silva como o hoje vice-reitor da Universidade de Coimbra, Avelãs Nunes, falam na grande consideração que nutrem pela figura do antigo secretário de Estado. "Acho que se aceitaria tal acto em relação a livros de propaganda nazi-fascistas que andassem pelas bibliotecas escolares, guardando um exemplar", diz Avelãs Nunes. "Mas dentro da mesma lógica que leva a Constituição a proibir organizações fascistas. Há uma diferença entre a liberdade de pensamento e a liberdade de acção daqueles que difundem essas ideologias. As instituições têm que se defender e só os democratas podem defender a democracia. A democracia não se pode oferecer aos seus inimigos e é preciso preservar a juventude desses meios de propaganda", observa o antigo secretário de Estado, visto na altura por Magalhães Godinho como uma espécie de representante do PCP na equipa governamental da educação.
"Não se mata a História"Convidado a dizer o que faria se o seu secretário de Estado lhe tivesse falado no despacho, Emílio da Silva diz que não se atreve sequer a avançar uma resposta:"Uma coisa é estar a falar aqui descansado ao telemóvel, outra é estar em cima dos acontecimentos, a vivê-los. Por isso não falo sequer em reprovação, mas em surpresa. Rui Grácio é um homem por quem todos nós temos muita consideração".
Este coronel, que foi, por um breve período, em 1975, presidente da RTP e hoje exerce funções de consultadoria, não hesita, porém, em definir a sua posição global sobre o assunto: "Acho que [os livros] fazem parte da História do país. Sendo eu militar e tendo, enquanto tal, participado na guerra colonial, seria contraditório pensar de forma diferente desta".
Avelãs Nunes aceita também o repto: "Vendo o que aconteceu com os olhos de hoje, penso que reflectiria muito sobre o que fazer e como fazer. Não seria fácil. A questão é, assim, como fazer: Destruir? Guardar em armazéns Pôr em caixotes? Mas esse é o processo em que menos se sujam as mãos. Só que pergunto: será eficaz?". Reconhece, porém, que "a destruição pelo fogo é uma marca histórica terrível. Para gente de uma certa geração como a nossa, essas memórias arrepiam. Não se mata a história."
Mesmo os ministros Vitorino Magalhães Godinho e Sottomayor Cardia (que acabaram por se incompatibilizar com Rui Grácio) mostram alguma dificuldade em encontrar razões que expliquem o despacho.
Embora sem lhe pronunciar o nome (acabaram por se incompatibilizar), o historiador queixa-se de que se passaram coisas nos bastidores do Ministério de que lhe não foi dado conhecimento. Quanto à destruição dos livros, em concreto, insere-a em "toda uma orientação que houve dentro da Revolução e que, a coberto do antifascismo, representava (...) a falsa esquerda".
Mário Sottomayor Cardia, apesar das divergências sobre política de Educação que assume ter tido com o então seu correlegionário no seio do Partido Socialista, diz que se tratava de "uma personalidade muito cordata", mas que "teve essa triste inspiração" que haveria de estar na origem de "autos de destruição" em bibliotecas de todo o país.
"Nunca mais falámos do assunto entre nós", dizem o escrivão e a primeira testemunha do auto na escola dos Marrazes. "Cumprimos, mas não demos alarme. Ninguém sabia onde o outro se situava, e andavam por aí o MFA e o Copcon", acrescenta o professor Arnaldo, que não só não levou o assunto ao sindicato, de que foi, com a mulher, um dos animadores na zona centro, como nem sequer dele fez menção a Tomás de Oliveira Dias, um dos mais conhecidos deputados do então PPD, de quem era amigo desde os tempos da ala liberal e da Sedes.
"Para mim era uma ordem do PC", remata, na sua casa de Leiria, mas sempre lembrado dos Marrazes, onde educou, com a mulher, gerações de alunos, de quem receberam ambos diversos tributos de homenagem e a quem continuam a ouvir, ainda hoje, palavras de agradecimento.