O Zero e o Infinito
Há apenas duas concepções da moral humana e estão em pólos opostos. Uma é cristã e humanitária, considera o indivíduo sagrado (...). A outra parte do princípio fundamental que um fim colectivo justifica todos os meios, e não apenas permite mas exige que o indivíduo seja totalmente subordinado e sacrificado à comunidade - a qual pode dispor dele como de uma cobaia que serve para uma experiência, ou como o cordeiro que se oferece em sacrifício."Quem fala assim não é um qualquer Bin Laden. É Ivanov, juiz de instrução na URSS de 1937, encarregado de interrogar um opositor, Roubachov, e de o levar a assinar uma confissão de traição e de conluio com os inimigos da classe operária. Nomes fictícios de personagens reais de um romance de Arthur Koestler, escrito nos finais dos anos 30. "A vida de N.S. Roubachov é a síntese das vidas de muitos homens, vítimas dos chamados processos de Moscovo", escreve Koestler na introdução ao livro, a que deu o significativo nome de O Zero e o Infinito: o zero é o indivíduo, o infinito é o partido.
Porquê evocar este livro neste momento? Porque melhor do que muitos textos eruditos ele exprime a essência do totalitarismo: a submissão absoluta do indivíduo, o "zero", a uma entidade abstracta, "o infinito", seja ela denominada o partido, o colectivo, um homem, ou um Deus cruel a quem se atribui a avidez de sangue inocente. Totalitarismo dos algozes do estalinismo ou do nazismo que dispunham do indivíduo "como de uma cobaia para uma experiência", totalitarismo do islamismo radical que dele dispõe como "do cordeiro que se oferece em sacrifício".
Tal como na época com o nazismo e o estalinismo, os actos de terror do fundamentalismo islâmico, hoje, não são apenas crimes dispersos aqui e ali. Enquadram-se num sistema de pensamento e num objectivo estratégico de poder de vocação universal. Esse sistema assenta num profundo ressentimento histórico e combate pelo triunfo de uma civilização à escala planetária, "restabelecer o estado islâmico, o califado e converter o mundo inteiro" (Omar Bakri Mohammed à Pública). Os seus alvos são os regimes árabes acusados de trair o Islão e as democracias ocidentais, culpadas de o corromperem. As suas escolas, mais do que campos de treino terrorista, são campos de treino mental. "Querem moldar a mente e não o corpo", diz um jovem de uma madrassa. Mentes como a do assassino de Theo Van Gogh, que depois de disparar 15 balas, de degolar e de apunhalar o corpo da vítima, afirmou friamente: "Agi de acordo com a minha fé, faria a mesma coisa ao meu pai ou ao meu irmão."
Monstruoso? Sem dúvida. E a pergunta surge involuntariamente, mas insistentemente: Porquê? Qual a razão? Afinal é humano e sobretudo muito ocidental querer compreender. O problema não está na pergunta. Está, sim, em procurar uma resposta no quadro da nossa racionalidade, porque aí apenas encontramos o eco da nossa própria angústia. "Hier ist kein warum" (Aqui não há porquê), retorquia um nazi, em Auschwitz, a Primo Levi. Aqui também não. Apenas "matar o maior número possível de pessoas, porque senão o fizer, espera-o o fogo do Inferno" e não fazer distinção entre civis e não civis, porque a única distinção é entre "muçulmanos e descrentes" (O. B. Mohamed).
Serão estes homens e mulheres representativos do islão? A questão é difícil e perturbante. Difícil, porque não há um único islão: o mundo islâmico quer do ponto de vista religioso, quer cultural, é profundamente diverso. Perturbante, porque apesar da imensa maioria do mundo islâmico não ser nem fundamentalista, e muito menos terrorista, a quase totalidade dos terroristas são muçulmanos, ou reclamam-se do islão.
Bernard Lewis, um dos grandes investigadores do islão, afirma: "O islão é uma das grandes religiões da humanidade. (...) Ensinou a homens de raças diferentes a aceitarem-se como irmãos e a homens de crenças diferentes a viver lado a lado numa relativa tolerância mútua. Esteve na origem de uma grande civilização que permitiu a muçulmanos e a não muçulmanos a realização de uma obra útil e criadora que enriqueceu o património da humanidade. (...) No entanto, o islão, tal como outras religiões, teve também períodos sombrios originando em adeptos seus sentimentos de ódio e violência." Na opinião de Lewis, vivemos hoje um desses períodos. Esse ódio, que anima uma parte do mundo muçulmano, dirige-se essencialmente contra o Ocidente. Porquê? Porque se tornou claro, desde o século XIX, que a primazia do Ocidente é irrefutável e o declínio do mundo islâmico também.
Não se trata aqui de julgamentos de valor, mas de factos. Durante séculos, o islão foi a maior potência militar e económica. Nas artes, nas ciências e nas tecnologias atingiu um nível único. Progressivamente, a situação foi-se invertendo: a civilização ocidental tornou-se dominante, porque são as suas normas e valores que definem a modernidade. Em todos os aspectos importantes no mundo moderno o islão ficou muito para trás.
Quando tudo vai mal, prossegue Lewis, é humano colocar a questão: "De quem é a culpa? Quem nos fez isto? Ao longo do século XX foram designados muitos "culpados", dos quais se destaca, o imperialismo ocidental, primeiro através da hegemonia franco-britânica no mundo árabe, mais recentemente através da influência americana e da existência do Estado de Israel. Mas, na realidade, por muito problemática e até negativa que tenha sido a influência ocidental no Médio Oriente, ela não é a causa, mas sim a consequência da própria fraqueza interna dos países do Médio Oriente.
Nas últimas décadas, uma outra explicação, mais de cariz religioso, tem assumido uma força crescente: os fracassos do mundo muçulmano devem-se ao abandono do Islão autêntico. É a versão fundamentalista, para a qual o problema resulta, não da ausência de modernização, mas de uma modernização excessiva: preconiza a abolição dos códigos de leis e costumes de influência ocidental e a restauração da sharia, como única lei do país. Nesta versão, o inimigo é o Ocidente, mas sobretudo o reformador muçulmano que mina o islão do interior. E contra ambos há que travar uma guerra sem tréguas, inclusive pelos meios mais violentos. O facto de apenas uma minoria de fundamentalistas enveredarem pelo terror, nem diminui a ameaça planetária que representam, até porque a sua organização e infiltração não para de crescer, nem permite isolá-los do contexto religioso em nome do qual actuam. Porque apesar de estarem em contradição com os ensinamentos fundamentais do islão, é em seu nome que actuam.
Paralelamente, conclui Lewis, e talvez até como reacção ao terrorismo fundamentalista, um número crescente de homens e mulheres no mundo islâmico tende a substituir a pergunta: "quem nos fez isto?" por outra: "em que nos enganámos?" Ou seja, a procurar as causas dos problemas do mundo árabe e muçulmano no seu próprio interior. É desta interrogação, e da capacidade de renunciar ao ressentimento e à vitimização, que dependerá fundamentalmente o futuro do mundo muçulmano. E da sua capacidade de aceitar esta ideia simples, expressa por Primo Levi: "A nossa condição humana é inimiga de tudo o que é infinito." Investigadora em assuntos judaicos