Morreu Corino de Andrade, o médico que descobriu a doença dos pezinhos
A Universidade do Porto colocou as suas bandeiras a meia haste para homenagear a vida e a obra do cientista português
Dizem que nos últimos meses o corpo e a mente foram perdendo a força e vitalidade que sempre o caracterizaram e conseguiam surpreender tudo e todos. Ontem, aos 99 anos, comemorados na sexta-feira passada, o neurocientista Mário Corino de Andrade não resistiu a uma paragem cardiovascular, resultante da doença cardíaca e enfraquecimento que o prendeu à cama nos últimos anos. Os amigos, colegas ou, numa palavra, os admiradores da sua vida e obra lamentaram a perda do único médico português que descobriu uma doença e, sobretudo, do homem que todos consideram extraordinário. A Universidade do Porto colocou as suas bandeiras a meia haste. O corpo de Corino de Andrade estará hoje, em câmara-ardente, no Instituto Ciências Biomédicas de Abel Salazar (ICBAS), no Porto. O funeral realiza-se sábado.Uns realçam os sucessos da carreira, com 50 anos dedicados à investigação, que o levaram à descoberta da paralimóidose, a doença de Andrade, conhecida vulgarmente por doença dos pezinhos. Outros sublinham o homem com leve sotaque alentejano e uma cultura geral impressionante, que reagiu e resistiu ao regime fascista. Outros ainda preferem valorizar o amigo que ouvia os desabafos e o companheiro de muitas viagens. Todos lamentaram ontem a perda do professor Corino de Andrade.
O neurocientista licenciou-se em medicina e cirurgia em Lisboa e, em 1931, viajou para Estraburgo para trabalhar no Laboratório de Neuropatologia da Faculdade de Medicina, num esforço que lhe valeu o Prémio Déjerine.
No regresso a Portugal, em 1938 instala-se no Porto, cidade que nunca mais abandonou, mais precisamente no Hospital Geral de Santo António, onde no início dos anos 40 cria e dirige o Serviço de Neurologia. Em 1952 faz a descoberta que lhe mereceu o reconhecimento mundial.
A partir da observação de doentes, Corino de Andrade identificou e tipificou cientificamente a paramiloidose. À margem do exercício da medicina, Corino convivia com os homens de ciência do Porto e outros que se opunham ao regime de ditadura, como Bento de Jesus Caraça, Ruy Luís Gomes, Abel Salazar e Mário Soares. Logo após a queda do regime fascista, Corino de Andrade e o médico Nuno Grande integraram, desde 1974 a 1980, a comissão instaladora do ICBAS. Na década de 70, Corino de Andrade formou uma equipa de investigação com Paula Coutinho, tendo-se dedicado ao estudo da doença neurológica de Machado-Joseph.
Uma vida e obra de excelência
Corino de Andrade fez anos no dia 10 de Junho. E, como sempre, recebeu os amigos em casa, no Porto. Nuno Grande, médico e professor jubilado do ICBAS, visitou-o com um cesto com compotas embaladas. "Fez as perguntas habituais, sobre o tempo e outras coisas vulgares", lembrou ontem o, sobretudo, amigo.
"Estou triste", resumiu Nuno Grande, recordando "um calor" que Corino lhe transmitiu nesse último encontro, no dia do aniversário. No momento da despedida, sobram os imensos pormenores. Como os jogos que fazia com as visitas - "talvez por receio de lhe estarmos a esconder algo" -, fazendo as mesmas perguntas às pessoas, para cruzar informação. "Tinha um sentido de previsão extraordinário de tudo o que se passava no mundo. Era vulgar ouvi-lo a fazer previsões que, mais tarde, se confirmavam", notou Nuno Grande, tentado a contar uma história para quem não acredita nessas "profecias".
"Acho que nunca contei isto mas. Uma vez íamos sentados no carro - ele ao meu lado, porque nunca quis conduzir, nem quis tirar a carta - e ele estava a ler numa revista um artigo que falava no elevado número de crianças com malformações na União Soviética. Disse-me, nessa altura, estão com graves problemas económicos: "Esta economia vai cair. Oxalá caia devagar senão vai arrastar tudo atrás." Estávamos em 1976, dez anos antes da queda que acabou mesmo pró acontecer."
Em 2002, foi lançada uma biografia intitulada Corino de Andrade. Excelência de Uma Vida e Obra, da autoria da jornalista Maria Augusta Silva.
O livro dedica muitas páginas ao único médico português que "descobriu" uma doença. Fala das suas viagens e descobertas, do investigador persistente e do neurologista brilhante. Mas também do menino nascido em Moura, no Alentejo, que brincava com soldadinhos de chumbo em cima do mapa, da sua relação com o pai, do carinho pelo seu gato Chiquito e por outros animais, do estudante que fez greve, do preso na cela da PIDE, da sua maneira de ver o mundo, das suas cartas, do seu "pensar e dizer". De uma forma de excelência de estar na vida.