Morreu o homem do Licor Beirão
"A galinha, quando põe um ovo, cacareja", costumava dizer Carranca Redondo, o primeiro industrial que apostou na publicidade para vender o seu produto
Quando, aos 19 anos, comprou a pequena fábrica na Lousã que produzia o Licor Beirão, José Carranca Redondo estava longe de imaginar a projecção que a bebida espirituosa haveria de alcançar em Portugal e no mundo. Após quase sete décadas à frente dos destinos da destilaria que produzia "o licor de Portugal", o industrial faleceu ontem na Lousã, aos 89 anos. Anticlerical convicto, mas militante activo do CDS após o 25 de Abril, Carranca Redondo inovou ao introduzir, na década de sessenta, a publicidade nas estradas portuguesas. O arrojo valeu-lhe diversos processos em tribunal, mas diz-se que Salazar não levava a mal e até admirava o sentido de humor dos cartazes que promoviam "o beirão de que todos gostam..."
Desde muito novo que Carranca Redondo começou a trabalhar na fábrica lousanense que produzia diversos licores e bebidas, quase todos eles fabricados a partir de antigas receitas farmacêuticas. Depois de ter adquirido a fábrica, o jovem industrial decidiu apostar num deles, o mais refinado e de maior qualidade - o Licor Beirão - assim denominado em homenagem ao II Congresso Beirão, que decorreu em Castelo Branco em 1929. Criado a partir de uma receita secreta de uma farmácia centenária da Lousã, a bebida era inicialmente utilizada como fármaco para as dores de estômago e como digestivo. Hoje em dia, numa receita "muito semelhante à original", garante José Oliveira Redondo, filho de Carranca Redondo, o licor é produzido através de dupla destilação de diversas plantas e sementes que vêm de todo o mundo, como da Malásia do Brasil e da Tailândia. "E a partir daqui é segredo", afirma José Oliveira Redondo.
A expansão do Licor Beirão começou na década de sessenta, quando Carranca Redondo, um homem comunicativo e viajado, se apercebeu da importância da publicidade na comercialização de produtos. "A galinha, quando põe um ovo, cacareja", costumava dizer, tentando convencer alguns colaboradores dos benefícios que existem em propagandear um produto. Foi com esta intenção que introduziu, em Portugal, os cartazes publicitários de estrada que lhe valeram 93 processos por parte da Junta Autónoma de Estradas, que os considerava perigosos para a circulação rodoviária. Apesar de prescindir da colaboração de advogados, Redondo perdeu apenas uma das diversas disputas judiciais. Os cartazes, compostos por uma tabuleta amarela, sobre um fundo verde e florido com a inscrição "Licor Beirão, o licor de Portugal", proliferaram um pouco por todo país, transformando-se num ícone da publicidade portuguesa.
A criatividade de Carranca Redondo, republicano e "contra a situação", viria a merecer elogios do próprio Salazar, visado na tal campanha publicitária que aludia subliminarmente às origens beirãs do amargo ditador, em contraste com a doçura da bebida. Assim nasceu "o Beirão de quem todos gostam". Salazar, através do seu secretário Sollari Allegro, viria a tomar conhecimento da publicidade, antes mesmo de esta aparecer por todo o país: "Há-de perguntar lá ao seu conterrâneo quem é esse "beirão" de quem ele fala na publicidade", terá dito o Presidente do Conselho ao secretário, sem deixar de sorrir com o atrevimento do empresário.