Ria Formosa tem uma das mais densas populações de cavalos-marinhos do mundo
Há ainda quem acredite que os cavalos-marinhos pertencem à mesma esfera que os unicórnios e sagitários. Mas são bem reais, como mostram os dois milhões que existem na ria Formosa, no Algarve. Um projecto internacional estuda-os há cinco anos e descobriu que desenvolveram hábitos pouco comuns. Por Ana Machado (texto) e Pedro Inácio (Fotos)
A ria Formosa esconde um tesouro natural desconhecido de muitos: cerca de dois milhões de cavalos-marinhos formam uma das mais densas populações do mundo. Há cinco anos que é investigada por cientistas do Projecto Cavalo-Marinho, que envolve equipas de vários países. Estes pequenos animais ensinaram à ciência que nem todas as espécies de cavalos-marinhos apreciam os mesmos habitats, o que é muito importante para a sua conservação. E que nem todos são monógamos.Pode-se dizer que Janelle Curtis já conhece o leito da ria Formosa como a palma da mão. Há cinco anos que esta bióloga canadiana, com um doutoramento sobre cavalos-marinhos, mergulha nas águas da ria à procura deles. Existem ali duas espécies - o Hypocampus gutullatus, que está em maioria, e o Hypocampus hypocampus, com cerca de 200 mil exemplares.
Estes animais têm, em média, cerca de 15 centímetros. Os maiores, Hypocampus gutullatus, podem chegar aos 27 centímetros. Mas o Hypocampus hypocampus nunca mede mais de 17. Encontrá-los obriga a ter a vista muito treinada, explica Lucy Woodall, outra bióloga, que está a fazer estudos genéticos da população e se juntou há poucos meses a Janelle Curtis.
Procurem uma cauda enrolada
"Se não mergulharmos é difícil encontrá-los. Tentem procurá-los pela cauda enrolada, que sobressai do resto. Eles gostam de se enrolar à volta das algas, portanto, fixem bem os olhos nas algas e procurem caudas enroladas", diz Janelle, enquanto dá às barbatanas à volta do barco.
A investigadora diz que é preciso sorte para encontrar um grupo grande. Mas a sorte não andava por ali. Foram precisas duas horas para, finalmente, aparecer o primeiro cavalo-marinho: era acastanhado, tinha cerca de dez centímetros, e Janelle apressou-se a colocá-lo num recipiente com água. "É uma fêmea, se fosse um macho teria aqui um saco", refere, apontando-lhe para a barriga.
São os machos que geram os bebés, nesse saco a que Janelle se refere. É uma espécie de útero, onde os machos fertilizam os ovos, ali colocados pelas fêmeas. E é desse saco que os filhotes de cavalo-marinho, com poucos milímetros, nascem, ao fim de duas semanas a um mês, dependendo da temperatura da água. O trabalho de parto pode durar largas horas e costumam nascer 100 a 200 bebés, que imediatamente se tornam autónomos.
Assim que o dedo da investigadora se aproxima a cauda do cavalo-marinho, a cauda logo se enrola, procurando segurança. O toque suave, como que lodoso, não deixa esconder a rigidez da sua estrutura. De movimentos muito suaves, quase inerte, o pequeno cavalo-marinho, sozinho no recipiente cheio de água, permanece calmo, como se soubesse já que o seu destino é apenas ser mimado por alguns olhos curiosos e voltar rapidamente à água. Que é o que acontece logo a seguir.
A população de cavalos-marinhos da ria Formosa é uma das mais densas do mundo - com mais indivíduos num espaço considerado não muito vasto. Quando Janelle chegou ao Algarve, em 2000, não havia nenhum estudo sobre populações de cavalos-marinhos na Europa. E ninguém sabia deste tesouro que a ria escondia. "Preparava-me para estudar uma população no Sul de Espanha, em Torre del Mar, quando descobri a da ria Formosa. Um biólogo alertou-me para o facto de já ter encontrado aqui cavalos-marinhos. Quando comecei a procurá-los, eram imensos, e foi como se me estivessem a convidar para os vir estudar. Disse para mim mesma que ficaria era aqui", lembra a investigadora.
Janelle recorda-se de que muitas pessoas com quem falava no Algarve pensavam que os cavalos-marinhos não existiam, que eram imaginários. A bióloga, que acabou agora o seu doutoramento sobre os cavalos-marinhos da ria Formosa, na Universidade McGill do Canadá, no âmbito do Projecto Internacional Cavalo-Marinho, a que pertence, diz que os cavalos-marinhos algarvios têm muito a ensinar à biologia e à conservação.
"O que agrada a uma espécie em termos de habitat não é perfeito para outra. Saber isso é muito importante, para poder definir estratégias de conservação."
O estudo, baseado na análise de 700 cavalos-marinhos, revelou que o Hypocampus hypocampus dá-se bem com a pesca e não procura zonas muito ricas em algas, prefere locais mais amplos. Por seu lado, o Hypocampus gutullatus encontra-se mais facilmente em zonas ricas em algas e pouco procuradas pela pesca.
NamoradeirosE há ainda características dos cavalos-marinhos da ria Formosa que os tornam originais. A monogamia é uma característica comum nos cavalos-marinhos, que têm um parceiro único até que a morte os separe, mas a bióloga diz que os do Algarve têm hábitos polígamos, já vistos também em cavalos-marinhos criados em aquários, mas raros em meio natural: "Namoram constantemente. Não sei se é do clima, mas é um facto", graceja.
O namoro dos cavalos-marinhos tem um ritual diário. Os pares cumprimentam-se no início do dia, mudando de cor e dançando em piruetas, um em torno do outro, durante alguns minutos. Depois separam-se para o resto do dia.
Janelle diz que a ria Formosa reúne condições muito favoráveis ao cavalo-marinho: "O calor, a oxigenação constante da ria através da entrada da água do mar e o facto de ser extremamente rica em nutrientes pode justificar a grandeza da população."
Os dóceis cavalos-marinhos são predadores vorazes e oportunistas, que esperam que as vítimas, sobretudo pequenos crustáceos, se aproximem para os sugar através de uma mandíbula tubular que encaminha o menu directamente para um sistema digestivo rudimentar (não têm estômago).
Depois, o facto de ter poucos predadores joga a seu favor. Ser sedentário e gozar de uma boa camuflagem contribui para tal, a par com o facto de não ser apetitoso, por ter muitas espinhas e estruturas ósseas que fazem com que seja, literalmente, duro de roer.
Lucy Woodall está agora encarregue de levar um pouco mais adiante o estudo de Janelle Curtis: "Vou trabalhar sobre a interacção entre as populações da ria Formosa em termos genéticos, através de análises de ADN", explica. "Há indícios de que as duas espécies são muito próximas geneticamente. Isso justifica que sejam tão felizes e adaptados a este ecossistema", conclui a investigadora, para quem sensibilizar as pessoas para a importância desta população de cavalos-marinhos é também chamar à atenção para que seja preservada a ria Formosa.