Poeta de um obstinado rigor
Escreveu aos 25 anos um dos livros fundadores da poesia portuguesa contemporânea, As Mãos e os Frutos. Desde então, e até aos 78, quando publicou o seu último livro, Os Sulcos da Sede, nunca deixou de dar provas desse obstinado rigor que escolheu para título de um dos seus volumes. Com ele morre aquele que é o mais lido, mais traduzido e mais estudado dos poetas da sua geraçã.
No prato da balança um versobasta
para pesar no outro a minha vida.
Ofício de Paciência, 1994
(...) a poesia é uma espécie de animal
no escuro recusando a mão
que o chama.
O Sal da Língua, 1995
Numa entrevista que Eugénio de Andrade deu ao PÚBLICO em 1990, há uma frase que o define bem, quer como pessoa, quer como poeta, se é que esta divisão faz algum sentido: "Uma leviandade é uma coisa de que não sou capaz". Quem o conheceu bem, sabe que a mediocridade o exasperava a ponto de poder tornar-se duro, mas até essa ocasional impiedade era o seu modo de não ser leviano. E não foi mais implacável com ninguém do que o foi consigo próprio. Perseguia os seus poemas, de edição em edição, rasurando uma palavra desnecessária, suprimindo uma vírgula espúria, corrigindo uma cacofonia de que poucos leitores se aperceberiam. No final do ano 2000, quando reuniu toda a sua obra no volume Poesia, ainda conseguiu dispensar quatro poemas de Obscuro Domínio, um dos seus livros mais justamente apreciados. E lamentava-se de não ter conseguido libertar-se do célebre Adeus, que encerra o livro Os Amantes Sem Dinheiro e que começa com o verso: "Já gastámos as palavras pela rua, meu amor". O que lhe deteve a mão foi apenas a consciência de que o gesto seria irrelevante, uma vez que o poema anda há décadas pelas antologias e manuais escolares, e até já foi musicado. Para usar as suas palavras, "como é que se deita fora o que já pertence aos outros?".
E, de facto, os seus poemas "pertencem" hoje a tanta gente, tornaram-se sinónimo da própria poesia para tanto adolescente enamorado ou jovem aspirante a poeta, ecoam em tantos sucessores menores, que se foi como que criando a sensação difusa de que Eugénio seria apenas o intérprete maior de uma espécie de voz colectiva com data de nascimento incerta. Seria preciso voltar a ler toda a poesia portuguesa da primeira metade do século XX, por ordem de publicação, para se ter a noção exacta da singularidade - que nunca equivale a não se ter influências - do poeta que, em 1948, se revelava em As Mãos e os Frutos, mesmo tendo em conta que a primeira versão do livro era substancialmente diferente da que resultou das sucessivas rasuras e reescritas que o autor lhe foi posteriormente impondo.
Talvez por ser tão óbvio, não é fácil definir o que Eugénio trouxe de efectivamente novo à poesia portuguesa. Dos que mais cedo perceberam que As Mãos e os Frutos assinalavam o nascimento de um grande poeta português - Vitorino Nemésio e Jorge de Sena, Óscar Lopes ou Eduardo Lourenço -, talvez tenha sido este último, num ensaio datado de 1961 e intitulado Paraíso Sem Mediação, quem esteve mais perto de conseguir dizer o que esta poesia é. Há poetas de cuja obra é difícil falar pela sua complexidade, pelos seus diversos níveis de leitura, pela sua rede de alusões e envios, pela obscuridade dos seus referentes. Poetas que criam nos leitores a ansiedade de que alguma coisa de essencial para a plena compreensão do poema (seja lá isso o que for) possa estar a passar-lhes ao lado. Da poesia de Eugénio é difícil falar por razões simetricamente opostas. Eduardo Prado Coelho disse-o de forma lapidar: "Em Eugénio de Andrade, o poema é, na sua admirável transparência, de uma opacidade total: ele não permite que se veja através dele, porque continuamente nos reafirma que tudo está nele".
Recordando que, em poesia, as mais profundas alterações tendem a traduzir-se na forma, e menos no conteúdo, Eduardo Lourenço assinala o modo como Eugénio foi lentamente ascendendo "a uma música só sua, quase abstracta, quase só harmonia". Essa música, ou essa "espécie de música", como lhe chamou Óscar Lopes, onde se pressente Pessanha, com a sua aguda percepção do sentido do som, é talvez a face mais visível desta poesia. No entanto, os primeiros livros de Eugénio trazem também uma profunda originalidade ao nível do conteúdo: a entrada em cena, na poesia portuguesa, de uma personagem que raramente a tinha frequentado de modo tão despudorado: um corpo feliz, um corpo grato não apenas a tudo o que pode ver (como Caeiro), e também tocar, mas sobretudo grato a si próprio; um corpo que por vezes reconhece a inevitabilidade de projectar uma sombra, mas inteiramente liberto da corrupção da culpa. Num estudo recente, Alfredo Margarido afirma: "Eugénio é um dos raros - penso às vezes ser ele o único da sua espécie - poeta pagão".
O corpo foi sempre o centro da sua poesia. E se, nos últimos anos, se foi acentuando nestes poemas uma dimensão trágica, uma consciência mais pungente da passagem do tempo, isso deve-se ao facto de o corpo dos seus poemas ter ido acompanhando o envelhecimento do seu corpo físico. Mas Eugénio, e também nisso se afasta do veio dominante da lírica portuguesa, nunca cede ao melodrama ou ao sentimentalismo. Há na sua poesia, e houve também nele próprio, uma espécie de bárbara altivez que lhe proíbe a indignidade do queixume. Num notável poema dedicado à mão que, durante tantos anos, escreveu os seus versos, só exprime um voto: "A exigência,/ o rigor, acabaram por fatigá-la./ O fim não pode tardar: oxalá/ tenha em conta a sua nobreza".
O melhor depois dos 60 anosAgora que morreu, Eugénio, como todos os poetas, corre o risco - ou correm-no os seus leitores - de a sua obra tender a reduzir-se progressivamente a essa dúzia ou dúzia e meia de poemas que correm em todas as antologias e a que ficou a dever o seu precoce prestígio: As Palavras Interditas, que aqui transcrevemos, a Litania, o Poema à Mãe e, entre outros, esse Adeus que se sentiu tão tentado a suprimir. Mais ainda do que noutros casos, seria lamentável que assim acontecesse, porque a verdade é que muitos dos seus melhores poemas foram escritos depois dos 60 anos.
Essa é outra característica pouco habitual da sua obra: não é fácil detectar-lhe períodos altos e fases menos inspiradas. É até possível que a sua fidelidade temática e lexical, e a persistência dessa música peculiar de que falam Eduardo Lourenço e Óscar Lopes, encubram um poeta um pouco mais desigual do que hoje nos parece ser. Mas não há livro, desde As Mãos e os Frutos - e poderíamos recuar a Adolescente (1942), com a sua belíssima Canção - até Os Sulcos da Sede (2001), onde não se encontrem poemas merecedores de uma efectiva posteridade.
Ele próprio tinha uma predilecção pelo livro Branco no Branco (1984), embora afirmasse que lhe era mais fácil indicar aquele de que gostava menos: As Palavras Interditas (1951), do qual dizia "salvar" apenas alguns poemas, entre os quais o que deu título ao volume. É sintomático este juízo, já que se trata de um livro de poemas relativamente longos, para os hábitos de Eugénio, com um tom bastante confessional, e aqui e ali, cedendo a imagens um pouco mais convencionais.
Todos os volumes que se seguiram a As Mãos e os Frutos incluem grandes poemas - pense-se, por exemplo, na Litania, de Até Amanhã (1956) -, mas é possível que o poeta só tenha voltado a mostrar-se à altura desse livro inaugural em Ostinato Rigore e Obscuro Domínio, publicados, respectivamente, em 1964 e 1971. Ainda nos anos 70, publica um surpreendente primeiro conjunto de poemas em prosa, Memórias Doutro Rio. O segundo, de 1987, é Vertentes do Olhar, que inclui um dos mais espantosos textos da literatura portuguesa contemporânea, As Mães, escolhido, entre todos os poemas que escreveu, para o representar na antologia Rosa do Mundo. Essa é outra dimensão que poderá tender a passar despercebida: quer nos seus poemas em prosa, quer em muitos outros textos, Eugénio foi um magnífico prosador.
E, como poeta, os 15 anos que medeiam entre Matéria Solar (1980) e Os Lugares do Lume (1998) representam não apenas um período de produção razoavelmente intensa, mas abarcam também alguns dos mais conseguidos livros de Eugénio de Andrade, como Branco no Branco (1984), Rente ao Dizer (1992) ou Ofício de Paciência (1994).
A sua obra mais recente foi também marcada pela discreta tentativa de experimentar novos caminhos, testemunhada, por exemplo, pela maior frequência de alusões directas a pessoas, tratadas pelos seus nomes próprios, ou pelas referências a acontecimentos da actualidade, como a guerra do Kosovo. Até o PÚBLICO, mais precisamente a sua edição de domingo, teve a honra de figurar num dos seus poemas. Esta contaminação directa do quotidiano quase não existe nos seus livros mais antigos, se exceptuarmos alguns dos poemas que reuniu nessa espécie de obra aberta, agora finalmente fechada, intitulada Homenagens e Outros Epitáfios.
No entanto, o que é surpreendente é que mesmo os livros onde vai mais longe nestas e noutras inovações, incluem sempre um punhado de poemas que quase (e frise-se o quase) poderiam pertencer às suas primeiras obras.
E através de todos os seus poemas, para lá da persistência do que podemos chamar o seu estilo, existe uma outra fidelidade não menos essencial a uma visão solar e profundamente ética da vida. Para Eugénio, o modelo do humano, mais ainda do que o grande criador, é "um rapaz/ desses do Pasolini esplendidamente/ nu, plantado na terra", descrito num poema de O Sal da Língua, que encerra com estes versos: "O futuro/ talvez venha a ter gente assim/ feita da substância/ da luz; o vagaroso futuro;/ o presente não, não tem."