Eugénio ao sol, "como só os gatos dormem"
O corpo do poeta está em câmara ardente na Cooperativa de Árvore. As paredes foram limpas só para o receber, numa sala branca com sol e vista para o Douro
INÊS NADAIS
Houve muita gente no velório de Eugénio de Andrade, mas isso seria de esperar. O que não seria de esperar era que houvesse gatos, e logo sete, às seis da tarde, espreguiçados pelos degraus das traseiras, na Cooperativa Árvore, a apanhar um sol de Primavera-Verão e "a dormir em novelo/ como só os gatos dormem". Foi também para lá (não havia espaço suficiente na Fundação, e Eugénio de Andrade gostava daquele lugar), numa sala branca com portadas abertas para o o sol do Parque das Virtudes e, mais lá em baixo, para o Douro, que o corpo de Eugénio de Andrade foi transportado ontem de manhã, para ficar em câmara ardente até à saída do cortejo fúnebre. Em cima da urna, fechada, o último poema que escreveu, em 2002, no Hospital de Santo António, As Maçãs. "Também ele vai morrer, o verão,/ do verde ao vermelho/ as maçãs ardem sobre a mesa./ Ardem de uma luz sua, mais madura./ E servem-me de espelho". Também ele morreu, o Eugénio. "Às 4h00 da manhã ligaram-me a dizer da morte dele. Inconscientemente, vesti-me de preto. Mas quando cheguei ao Porto achei que não devia fazer luto pelo Eugénio, até mandei limpar as paredes para ficarem brancas. Ele foi sempre a exaltação da vida e a exaltação do corpo; dizia que nós somos o que resta dos deuses. Foi essa a grande lição dele. Só no fim da vida comecei a sentir as primeiras rugas no Eugénio. Sofria muito com o corpo maltratado, mas em contrapartida, como vingança, as palavras eram cada vez mais novas", notava o escultor José Rodrigues, fundador da Árvore. Foi um dos primeiros a despedir-se de Eugénio, mas pela tarde vários amigos foram aparecendo: Júlio Resende, Manuel Dias da Fonseca, José Tolentino Mendonça, Fernando Echevarría, Fernando Pinto do Amaral, Inês Pedrosa, Agustina. Alguns falaram, outros ficaram em silêncio, como se não houvesse palavras à altura de Eugénio.
"É uma amargura muito grande, mas continuo a dizer que a figura do Eugénio está acima de todas estas pequenas coisas. Ele ficou no sangue das pessoas", frisou Júlio Resende. Leitora de Eugénio desde os doze anos, idade em que recebeu um exemplar de As Mãos e os Frutos - "um livro maravilhoso até hoje, a que regresso sempre" -, Inês Pedrosa lembrou o papel tutelar do poeta para toda uma geração de leitores e de escritores: "A Sophia, com os contos infantis, e o Eugénio, com a poesia, iniciaram-me na literatura. Quando li As Mãos e os Frutos, naquela idade em que toda a gente quer escrever versos, o Eugénio deu-me a noção da distância a que eu estava da poesia. Mas fiquei deslumbrada e foi uma companhia muito forte nas alegrias e nas tristezas da minha juventude. Parecia que tinha sempre as palavras exactas. Temos uma ideia muito solar do Eugénio, mas ele tinha um lado de profunda comunhão com a dor que está numa frase extraordinária: "Às vezes sinto-me tão desesperado que me sento a escrever como quem chora"".