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O OLHAR DO POLÍTICO e protagonista Jaime Gama "Foi o grande mobilizador do Portugal pós-revolucionário"

Um dos subscritores do Tratado de adesão de Portugal à CEE, 38 anos feitos quatro dias antes, Jaime Gama foi também um dos maiores protagonistas do impulso final e decisivo das negociações que precederam a assinatura do tratado.

Há vinte anos era o ministro dos Negócios Estrangeiros do Governo do "bloco central" chefiado por Mário Soares. Hoje, no seu gabinete de Presidente da Assembleia da República, Gama considera que o projecto de adesão se transformou rapidamente "no eixo motor da consolidação do sistema democrático, assente numa economia que funcionasse a sério", no "grande mobilizador do Portugal pós-revolucionário" À distância, a opção europeia do país parece quase óbvia. Não era assim, no entanto, quando, em Abril de 1977, o I Governo Constitucional, igualmente liderado por Mário Soares, decidiu entregar em Bruxelas o pedido formal de adesão à CEE. Gama era então ministro da Administração Interna e Medeiros Ferreira ocupava a pasta que depois lhe pertenceu por duas vezes.
Quais eram então as alternativas? "A grande viragem foi quando se enterrou de vez o conjunto de possibilidades abertas pelo acordo de comércio livre com a CEE e a CECA (de 1972) e se deixou de lado a noção que devíamos avançar apenas para um acordo de associação", explica.
Enterradas com o PREC as opções anti-europeias (nacionalista, comunista e terceiro-mundista), o debate do campo pró-europeu "flutuava entre os defensores de um acordo de associação e os que defendiam uma adesão plena". Os primeiros valorizavam a questão económica mas não valorizavam tanto como os segundos a "importância que tinha para o país participar nos centros de decisão europeus".
A ideia da adesão plena, explica o antigo ministro, não surgiu imediatamente após o 25 de Abril. Nessa altura, mesmo nas forças pró-europeias, "a relação com a Europa assenta ainda numa perspectiva que tem a ver com a ajuda económica e financeira". Mas o programa do I Governo do PS "põe já claramente como objectivo o pedido de adesão".
Como é que o PS se transforma tão rapidamente no partido da Europa, quando a Europa não tinha praticamente lugar nos programas políticos da oposição democrática ao anterior regime?
"Mais por reflexão em relação ao que se passa em 1974-75 quanto aos riscos para a subsistência de um sistema democrático", explica. É uma "evolução rápida que tem a ver com necessidade de criar uma âncora forte para a democracia, libertando-a de modelos heterodoxos".
A grande preocupação do I Governo é apresentar em Bruxelas o pedido de adesão e fazê-lo antes de Espanha. Gama explica porquê: "O nosso processo de transformação política tinha ocorrido primeiro, mas com um curso bastante diferente. Sinalizar claramente a opção europeia era uma prioridade absoluta." Na antecipação a Madrid pesa também o facto de ser "perfeitamente insustentável" a possibilidade de ver a Espanha evoluir nessa direcção ficando Portugal de fora. E havia ainda outras razões, explica, que davam vantagem a Lisboa.
"Nós tínhamos uma tradição de maior articulação económica com a Europa, já participávamos na EFTA [Associação Europeia de Comércio Livre] e a Espanha não, a associação comercial com a CEE estava mais avançada, a Espanha tinha uma economia mais fechada." Era preciso "capitalizar" estas vantagens.

A Europa ainda não estava preparada
Além da vontade portuguesa, havia o lado europeu. Em 1977, quando Portugal entregou o seu pedido de adesão, aliás rapidamente aceite, "a CEE ainda não tinha a questão do seu alargamento a Sul completamente resolvida".
A Comunidade tinha-se alargado uma primeira vez, em 1973 (Reino Unido, Irlanda e Dinamarca), e uma segunda vez, em 1981, à Grécia. Mas, diz Jaime Gama, "ainda não tinha feito uma grande reflexão sobre o processo de alargamento como um processo contínuo".
A França, então presidida por Valery Giscard d"Estaing, chegou a ser, em certos momentos, "bastante hostil" à entrada dos dois países ibéricos, lembra. "Por razões que tinham a ver sobretudo com a agenda interna francesa. Com a questão dos recursos próprios [da CEE], da negociação do pacote financeiro inglês, com a subsidiação da política agrícola, com a livre circulação e com as políticas sociais."
O antigo ministro recorda que alguns sectores do RPR, o partido gaullista que antecedeu o actual MPF de Jacques Chirac, "chegaram a tentar introduzir em Portugal uma corrente anti-europeia forte". Essa acção foi liderada por Charles Pasqua, antigo ministro do Interior francês, "que chegou a vir cá com esse objectivo".
Mas a própria França, diz Gama, sobretudo a partir do Conselho Europeu de Estugarda (Junho de 1983) "acabou por reconhecer que o dossier do alargamento tinha de ficar claramente separado de outros conjuntos de problemas que a CEE tinha por resolver."
Convém lembrar que, até à chegada de Jacques Delors à Comissão, em 1984, a Europa estava a viver um período de euroesclerose. "Sem grandes assuntos para exibir como resultado positivo", observa Gama. Ora a questão do alargamento começava a surgir como "um resultado visível".
Jacques Delors é escolhido para presidir à Comissão em 1984. Em França, a eleição de François Mitterrand, em 1981,abrira um período mais favorável aos dois países candidatos. Finalmente, o semestre decisivo para concluir as negociações (a primeira metade de 1985) vai caber à presidência italiana. "[O ministro dos Negócios Estrangeiros] Andreotti e [o primeiro-ministro] Bettino Craxi têm um papel notável". "Tal como a presidência anterior da Irlanda". É a Irlanda que permite a assinatura do célebre Constat d"Accord, duramente negociado por Soares e pela diplomacia portuguesa, no qual a CEE assume um compromisso em relação ao calendário da adesão.

A questão espanholaOutra das preocupações portuguesas, lembra Gama, foi fazer com que "o nosso dossier bilateral com a Espanha fosse rapidamente ultrapassado, de forma a não ser transformado num argumento para adiar as negociações." Havia múltiplas questões a resolver com Madrid, entre as quais a dificílima questão das pescas."À nossa maneira, procurámos estimular a Espanha", sobretudo no sentido de vencer a resistência dos sectores mais proteccionistas da administração espanhola, que dificultavam as negociações.
E Portugal sabia que a Europa queria que os dois países entrassem ao mesmo tempo, mesmo que as negociações com Portugal avançassem mais depressa.

Última oportunidade?Existia a noção muito clara, explica Gama, de que, "se não concluíssemos as negociações depressa, o resultado final poderia alcançar-se bastante mais tarde". Essa noção foi particularmente aguda "quando se começou a criar um vazio no processo negocial." "Não tínhamos sinais de que as coisas andavam, os dossiers não progrediam porque havia instruções claras para não os fazer progredir". Sentia-se "uma grande indefinição do lado europeu quanto à opção estratégica central - queremos ou não queremos esses senhores na CEE?"
Depois tudo se acelerou. Gama diz que a Europa acabou por compreender as vantagens do alargamento a Sul. "Fazer a integração dos dois países ibéricos era também saldar as suas contas com a convivência que tinham mantido com as duas ditaduras". Com a vantagem adicional de os dois países ibéricos abrirem à CEE "um leque de relações internacionais notável".

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