Memória e cinzas no centenário do Museu Bocage
Chama-se Museu Bocage à secção de zoologia e antropologia do Museu Nacional de História Natural, em homenagem ao zoólogo José Vicente Barbosa du Bocage. Em 1978, quase todo esse passado ficou reduzido a cinzas, após um grande incêndio. É a memória de 100 anos que o Museu Bocage celebra até 15 de Junho
A exposição comemorativa do centenário do Museu Bocage, a secção de zoologia e antropologia do Museu Nacional de História Natural da Universidade de Lisboa é um apelo aos sentidos. Ouve-se, à entrada, o crepitar das chamas do incêndio que devastou o edifício do museu em 1978. O som vem de imagens da época, cedidas pela RTP. As imagens que vemos num televisor daquele dia 18 de Março são impressionantes. Ainda se sente o cheiro a cinzas, que emana dos documentos e livros resgatados das chamas e ali expostos, muitos debruados a negro pelo fogo. Bastaram horas para apagar mais de uma centena de anos de trabalho de recolha que fez com que o Museu Bocage, fundado em 1905, fosse a mais rica colecção de zoologia que Portugal teve. Mas já não tem.Mafalda Madureira, uma das responsáveis pela montagem da exposição Cem Anos de Museu Bocage, gosta de lembrar como, para a montar, se abriram pela primeira vez caixas que encerravam livros e documentos que se salvaram do incêndio de 1978: "Ainda ali estavam livros completamente carbonizados. Pegámos neles e ficavam desfeitos em pó nas nossas mãos."
Do que se salvou, a exposição mostra obras que provam o contacto com o fogo e um dos únicos exemplares de esqueletos de animais salvos: um peixe, da espécie Chaestostomus histrix vandelli, hermeticamente fechado num saquinho de plástico desde 1978, tal como foi guardado após a limpeza do museu, a seguir ao incêndio. Dos restantes documentos e obras expostas, Mafalda Madureira explica que estão ali hoje porque no dia do incêndio estavam guardadas num cofre.
Algumas imagens dos tempos áureos do Museu Bocage mostram como a sala de exposições, de mil metros quadrados, estava cheia de animais empalhados, leões, girafas, aves, insectos, maioritariamente recolhidos durante a direcção de José Vicente Barbosa du Bocage. O algodão e as folhas secas usados antigamente para empalhar esses animais foram um dos melhores combustíveis que o incêndio usou para se propagar.
O museu tinha até exemplares de animais já extintos, como é o caso da cabra do Gerês. Hoje, e após a destruição deixada pelo incêndio, a sala de mil metros quadrados, ao lado da actual sala de exposições, ainda está vazia, de paredes em tosco. A sala de exposições actual era uma pequena sala de reserva, que agora há dificuldade em encher. "Foi pelas mãos de José Vicente Barbosa du Bocage que passaram o maior número de exemplares africanos. Ele publicou mais de 200 trabalhos. Mas do que reuniu não sobra nada. Só o seu nome no museu", lamenta Graça Ramalhinho, a actual directora do Museu Bocage.
Das viagens filosóficas às invasões francesas
A história daquela que foi a colecção de zoologia mais rica do país começou fora das paredes do antigo edifício da Escola Politécnica, que era ainda no século XVIII o Noviciado da Cotovia. Em 1772, o naturalista Domingos Vandelli, então director do Real Museu e Jardim Botânico da Ajuda, decide patrocinar as primeiras viagens filosóficas, expedições de naturalistas exploradores a África, América e Ásia.
As invasões napoleónicas levaram grande parte desse espólio de Lisboa para Paris, em 1808. O que sobrou dessa altura de saque foi transferido, em 1836, a mando da Rainha D. Maria II, para o Museu da Academia das Ciências. Mas em 1837 o Colégio dos Nobres, que sucedeu ao Noviciado da Cotovia, passa a chamar-se Escola Politécnica. Para servir a oitava cadeira, que tratava a história natural, fisiologia e zoologia, pede-se a passagem da colecção que estava na Academia de Ciências para a Escola Politécnica. Só em 1858 o pedido dos professores foi atendido e quem recebeu a colecção foi José Vicente Barbosa du Bocage, que era lente proprietário da cadeira e que passou então a director da secção de zoologia do Museu de História Natural.
Foi aí que começou, verdadeiramente, a construção da colecção de zoologia do Museu de História Natural. Em 1859 e 1860, José Vicente Barbosa du Bocage faz questão de ir a Paris reencontrar o que tinha sido levado da colecção da Ajuda pelos homens de Napoleão, escolhidas pelo naturalista Geofroy de Saint-Hillaire, do Museu de História Natural de Paris, um dos cientistas que participou na expedição de conquista de Napoleão ao Egipto.
"Mas o próprio Barbosa du Bocage reconhece que o facto de terem ido para Paris fez com que as peças fossem estudadas e catalogadas, o que decerto não teria acontecido cá", diz, com ironia, Graça Ramalhinho. Na exposição agora patente consta uma lista, elaborada por Barbosa du Bocage, das peças que interessava recuperar.
Vanguarda de segunda classe
Em 1863, D. Luís fez depositar no museu a colecção particular de D. Pedro V, rica em aves e conchas. Vários exploradores, entre os quais o naturalista e explorador José d"Anchieta, contribuíram para o enriquecimento do acervo zoológico, criando um "museu de vanguarda dentro dos museus de segunda classe", como dizia Bocage.
Graça Ramalhinho afirma que hoje não falta só ao Museu Bocage o rico espólio de zoologia devorado pelas chamas em 1978. Faltam também meios humanos e financeiros para pôr de pé o que restou do museu: "Já passaram 27 anos sobre o incêndio e o museu ainda está num estado deplorável. E não se vê nenhuma luz ao fundo do túnel, o que nos deixa desesperados."
Mas já no século XIX Barbosa du Bocage se queixava da falta de apoio: "Nas circunstâncias em que se acha, (...) o Museu de Lisboa não pode desenvolver-se e prosperar, mas precipitar-se-á brevemente em rápida e fatal decadência. Não há quem estude uma parte das suas colecções (...). Pode haver entre nós quem afirme a inutilidade deste estabelecimento (...); porém, neste caso, exige a lógica não que o deixem como está, mas que o suprimam. Ter ou não ter um museu zoológico é o primeiro ponto a decidir (...)." Estas palavras, com mais de 100 anos, não podiam estar mais actuais, diz Graça Ramalhinho.