JEAN LOUP PASSEK O cinéfilo emigrante acidental
É um francês de origem russa e "coração português". Jean Loup Passek é nome de historiador, crítico, cinéfilo. Mas também, desde sexta-feira, de um museu de cinema em Melgaço. É a sua homenagem ao país dos emigrantes que adoptou (e o adoptaram) como família. Um emigrante acidental. Um viajante imóvel.
Não usa computador, nem sequer máquina de escrever; não viaja de avião (por razões também de saúde) e dá-se mal com os telemóveis; prefere passar um final de tarde comendo broa e presunto na cozinha duma família de emigrantes portugueses a frequentar os circuitos parisienses que dão acesso às carreiras políticas e mediáticas. Apesar disso, uma vez deslocou-se, de gabardina e lambreta, a uma recepção em Matignon, a residência do primeiro-ministro francês, na altura Edouard Balladur. Quando entrou no palácio, depois de ter tido a preocupação de estacionar discretamente a lambreta a certa distância da porta, deu consigo a participar numa reunião com um grupo restrito de convidados, onde estava, como figura principal, o então primeiro-ministro português Cavaco Silva. A ele pediam-lhe que falasse das relações culturais luso-francesas...Jean Luc Passek, um francês de origem russa, é a personagem de que aqui se fala. E esta semana esteve em foco em Portugal por ter sido inaugurado, na sexta-feira, o Museu de Cinema de Melgaço, que retém o seu nome e, principalmente, a sua valiosa colecção de fotografias, cartazes, livros, documentos, câmaras e outros aparelhos históricos, que foi adquirindo e guardando ao longo de quase cinco décadas de atenção às coisas do cinema.
A doação que o coleccionador fez ao município de Melgaço, há três anos, Passek justifica-a como um gesto de agradecimento ao nosso país. Em particular, aos seus amigos emigrantes oriundos da vila minhota, que conheceu nas obras de ampliação do metro de Paris, no início dos anos 70, quando por aí fazia a sua demanda do "cinema directo". Um dia, meteu conversa com dois deles, António Souto e António Alves, e estes convidaram-no para jantar. E foi. "Ele entrou em nossa casa com um livrinho, o dicionário Larousse, que deu à minha filha. Foi muito simpático, e a partir dessa noite ficou a pertencer à nossa família", recordou à PÚBLICA há cerca de dois anos (edição de 19/01/2003), em Melgaço, António Souto, um desses emigrantes entretanto regressado à terra natal.
A colecção podia muito bem ter ido também para a Nazaré, terra de outros ex-emigrantes que o acolheram igualmente na altura em que trabalhavam na capital francesa. Passek, aliás, comprou entretanto uma pequena casa no concelho de Melgaço e construiu outra junto ao mar, a norte da Nazaré. É entre elas e a sua residência no Quartier Latin parisiense que divide os seus dias.
"Coração português""Estou contente. É um verdadeiro milagre que o museu tenha podido nascer aqui, em Melgaço. Ninguém me propôs nada de concreto em França. Gastei o meu dinheiro a comprar isto tudo, e não queria que a colecção ficasse em França. Sinto-me um pouco egoísta. Para mim, Portugal é que é importante", justifica Passek, dizendo que a sua vida sempre foi gerida "por sentimentos". Ele que, disse uma vez numa entrevista, tem "espírito eslavo, nacionalidade francesa e coração português".
No entanto, Passek tem uma forte relação com o meio cinematográfico no seu país. Fundou e dirigiu o festival de cinema de La Rochelle, coordenou o serviço de cinema do Centro George Pompidou e também a secção Câmara de Ouro do Festival de Cannes, cargos que abandonou quando optou por se virar em definitivo para a gestão da sua colecção e do seu museu em Melgaço. Em paralelo, só mantém a coordenação do Dicionário Larousse do Cinema, estando já a trabalhar para a sua sétima edição.
"Jean Loup Passek tem a paixão da arte do cinema. Conhece cinematografias raras, dos países de Leste, do Oriente, da América Latina. E teve um papel fundamental na divulgação em França, e na Europa, destas cinematografias, a partir do seu trabalho em La Rochelle e no Centro Pompidou", diz o seu amigo Bernard Despomadères, também francês e há anos radicado no Porto, e que o apoiou na instalação do museu de Melgaço. Sobre a personalidade do seu amigo, acrescenta que ele "tem um lado russo, muito sentimental e afectivo".
O cinema português também usufruiu já da acção de Passek. Nomeadamente Manoel de Oliveira, de quem organizou mostras em la Rochelle e no Centro Pompidou, que foram determinantes para o conhecimento da sua obra em França. Mas, curiosamente, "em Portugal, os filmes que mais me interessam são os do António Campos, pelo seu universo, que é pouco conhecido. Não é um cineasta moderno. Mas é importante para a minha memória. A certa altura, quis conhecer o homem, e ele revelou-se exactamente como eu o imaginava a partir dos seus filmes", diz Passek, que é muito cioso das suas escolhas afectivas, que aliás se vão poder ir conhecendo à medida que o museu de Melgaço for mostrando a sua colecção, que em número de fotografias deve ascender a cerca de meio milhão.
"É a minha escolha. Por exemplo, tenho poucas fotografias dos filmes de Jean-Luc Godard, porque não gosto muito do cinema dele. É evidente que é uma figura importante na história do cinema. Mas, pessoalmente, não me interessa".
É assim Passek, que na sua relação com o cinema e com tudo o que ele permite se considera "um viajante imóvel".