"Não" provoca tempestade política em França
Mais de 55 por cento dos franceses disseram "não" ao tratado constitucional europeu. A situação económica e social motivou 62 por cento deste voto, o texto da Constituição 40 por cento, e a contestação ao governo francês apenas 24 por cento. Chirac diz que vai ser mais difícil defender os interesses da França na Europa. Ana Navarro Pedro, Paris
É um "não"claro e sem apelo: entre 54,5 e 55,5 por cento dos franceses disseram ontem "não" no referendo de ratificação do tratado de Constituição europeia. Com uma forte participação de uns 70 por cento dos 42 milhões de eleitores inscritos, e com uma ínfima percentagem de votos em branco ou nulos, a força da mensagem dos eleitores gauleses não deixou margem para dúvidas.Na Europa, Paris fica atingida pelo voto e seu discurso terá menos peso. No plano interno, a França faz rebentar a crise política e social latente desde há dez anos. Mas, para já, o veredicto das urnas deixa a maioria de direita enfraquecida, desmentida pelos eleitores e à procura de uma liderança e de uma nova política, tão mais difícil quanto a crise económica não deixa margem de manobra aos governantes. Na esquerda francesa, literalmente desarticulada pela campanha referendária, o efeito do "não" é devastador. Os líderes socialistas do "não", como do "sim," deitavam ontem água na fervura, mas a tensão entre militantes era quase física.
Um dos primeiros a reagir foi o principal derrotado, o Presidente da República, Jacques Chirac, que se implicara fortemente pela campanha pelo "sim". Numa curta alocução, o chefe de Estado tomou "nota" da ampla vitória do "não" no referendo à Constituição europeia e anunciou que tomará "uma decisão nos próximos dias sobre o Governo". Logo a seguir, disse que a França continua a ocupar plenamente o seu lugar na Europa apesar da vitória do "não", e prometeu que irá ao Conselho Europeu de 16 e 17 de Junho representar a decisão dos franceses. Mas esta vitória cria, inevitavelmente, "um contexto difícil para a defesa dos nossos interesses na Europa", advertiu o Presidente francês.
Pedida a demissão de Chirac Houve apelos insistente à demissão de Jacques Chirac no campo do "não", tanto da extrema-direita de Jean-Marie Le Pen, como da direita soberanista de Philippe de Villiers. Na esquerda socialista favorável ao "não", a posição em relação ao chefe de Estado é mais política: "Ou o Presidente Chirac se submete ao voto dos franceses e exige uma renegociação da Constituição em Bruxelas, ou então demite-se", disse o senador socialista Jean-Luc Mélanchon, um dos vencedores do referendo. Mas Jacques Chirac não se demitirá. O Presidente francês excluiu claramente esta hipótese durante toda a campanha referendária.
As motivações do voto reforçam, provavelmente, esta decisão. Segundo o instituto Ipsos, a situação económica e social motivou o "não" a 62 por cento. O texto do tratado de Constituição europeia vem em segundo lugar, inspirando 40 por cento do voto negativo. A contestação ao Governo aparece apenas em terceiro lugar, justificando 24 por cento das razões do voto. A composição sociológica da escolha eleitoral vai fazer correr ainda mais tinta: nas zonas rurais economicamente deprimidas e nas zonas urbanas mais desfavorecidas, o "não" foi maioritário. Por exemplo, os bairros Norte de Marselha, populares e pobres, disseram "não" a 80 por cento. Mais curioso, Paris deu 56 por cento dos votos ao "não. É uma surpresa tanto maior quanto as urnas tinham ficado abertas até ás 22 horas com a secreta esperança dos poderes públicos de que o voto dos parisienses fizesse pender a balança para o "sim".
As consequências imediatas do voto na maioria de direita, estão directamente ligadas à remodelação ministerial que deveria ocorrer a muito breve prazo. O primeiro-ministro, Jean-Pierre Raffarin, disse ontem que as "decisões já amadureceram", mas pediu "calma" aos jornalistas que lhe pediam esclarecimentos sobre a sua eventual demissão. O nome de Dominique de Villepin, actual Ministro do Interior, continua a ser o mais citado para lhe suceder. No entanto, será preciso contar com Nicolas Sarkozy, presidente do partido maioritário UMP (União para um Movimento Popular) mas grande rival de Chirac. Sarkozy exprimiu-se logo a seguir ao Presidente Chirac e interpretou de duas maneiras a mensagem do "não". Primeiro, que os franceses querem uma Europa "mais democrática e protectora". Depois, insistiu que os franceses querem que a equipa dirigente encontre uma nova política, em "ruptura com o pensamento único e com os hábitos do passado".
O grande vencedor da noite foi afinal o mais silencioso: o nº 2 do Partido Socialista Francês (PSF), que defendeu o "não" desde o começo, contra vontade do seu partido, não se exprimiu. Laurent Fabius participa hoje numa reunião de urgência da direcção do PSF, mas não teria a intenção de contestar a chefia do primeiro secretário, François Hollande, o outro grande perdedor do escrutínio.