João Pedro Rodrigues, caça- -fantasmas, na Croisette com Odete
O cineasta revelado com O Fantasma continua atrás de fantasmas. Odete, o seu segundo filme, está na Quinzena dos Realizadores, a par de outro português, Alice, de Marco Martins. Duas histórias de obsessão com nome
de mulher
Em apenas um filme, O Fantasma (2000), fulgurante fábula nocturna sobre o desejo sexual de um homem do lixo, João Pedro Rodrigues impôs-se como um dos cineastas mais dotados da sua geração. Não do cinema português, mas do cinema tout court - pelo menos é assim que a revista francesa Les Inrockuptibles o descreve, o que é um sinal das expectativas (elevadas) que pesam sobre Odete, a sua segunda longa-metragem, que integra a Quinzena dos Realizadores, onde Manoel de Oliveira se estreou em Cannes, em 1981, com Francisca, e onde está outro filme português, Alice, primeira obra de Marco Martins (ver texto abaixo).É a primeira participação no Festival de Cinema de Cannes de Rodrigues, 38 anos, que está consciente de que a passagem ao segundo filme é decisiva. O realizador é o primeiro a dizer que "é impossível não pensar que houve um filme atrás". O Fantasma revelou um cineasta de obsessões: voyeurismo, fetichismo, um imaginário bas-fonds, uma carnalidade sexualmente explícita, personagens de uma voracidade quase totalitária, nos abismos do animalesco. Que fazer depois disto? Sim, ele está consciente das expectativas. "Mas ainda as sinto mais em mim. Porque esta história de fazer um segundo filme é muito difícil. É tentar pensar: "O que é que eu quero contar agora?" E, às vezes, não é assim tão evidente."
Está-se à espera - há cinco anos, o que é muito tempo - que o segundo filme confirme algo que fez de O Fantasma um gesto radical, ou que o ultrapasse, e a recepção a Odete, exibido ontem à noite em Cannes, terá muito a ver com qual dessas formas de antecipação é que o espectador parte para o filme.
Ele continua atrás de fantasmas: há um rapaz que morre, mas continua a assombrar a vida dos outros. Também podia chamar-se O Fantasma... É o que se pode sentir: que Odete é um filme assombrado por O Fantasma, que João Pedro Rodrigues não se conseguiu libertar do primeiro filme. "Já não sei quem é que dizia que se estava sempre a fazer o mesmo filme. Não sei se hei-de fazer sempre o mesmo filme, mas o argumento que estou a escrever também tem a ver. É inevitável, são os meus fantasmas também", diz.
Como O Fantasma, Odete centra-se na obsessão de uma personagem que passa para uma outra dimensão ou se ultrapassa, no limite da auto-diluição. Há um rapaz que morre depois de uma promessa de amor eterno - ou, pelo menos, até que a morte os separe. A morte não há-de separá-los porque há um corpo de mulher disponível para se deixar possuir. Eis Odete, patinadora de supermercado, white trash girl, suburbana que se há-de transfigurar, de corpo e alma, numa figura masculina. É um bicho da terra, como o era a personagem principal de O Fantasma, que se escapava pelos telhados para acabar num aterro do lixo. Odete também vai fugir pelos telhados, rumo ao cemitério, para uma comunhão telúrica - uma campa será a sua casa.
Um filme "romântico"É um filme sobre o luto, um filme sobre "o que é que se faz à vida depois de alguém morrer". Por isso, o que em O Fantasma era uma celebração do desejo sexual, ganha aqui contornos mórbidos e fantásticos, mesmo que o filme parta sempre de um pressuposto realista. A carnalidade à flor da pele ainda aqui está, desde o admirável plano de abertura de um beijo, e continua a sentir-se que poucos, como Rodrigues, sabem filmar o desejo de forma tão assombrosa, mas o sexo é quase residual, quase um fantasma. "Não quero ser o João Pedro Rodrigues que faz filmes-choque de sexo explícito", diz o realizador.
Se o sexo não é tão central em Odete, é porque aqui se tenta seguir a via do melodrama. "Acho que é um filme muito romântico. De alguma maneira, é mais sentimental que O Fantasma, que era mais frio. Gostava que as pessoas se emocionassem. Tentei que a forma fosse no sentido da emoção. Por isso é que neste filme há travellings. A maior parte das vezes são uma espécie de construção da emoção."
É aqui, portanto, que os dois filmes divergem, embora a desejada linha melodramática de Odete não seja totalmente conseguida: há uma exacerbação quase pop das cores que lhe confere uma dimensão artificiosa e, por isso, distanciada, mais Almodóvar do que Sirk. "Queria que os sentimentos fossem exacerbados de alguma maneira e, por isso, se calhar, há esse lado um pouco exagerado. Na caracterização dela, tentámos que houvesse uma evolução, porque ela muda radicalmente, veste-se de uma forma muito suburbana, com muitas cores e depois está sempre de negro, como se o negro apagasse a cor."
Ela é Odete, que é interpretada por Ana Cristina de Oliveira, actriz ocasional e modelo em trânsito entre Los Angeles e Lisboa, que "tinha feito umas coisas de actriz" de que Rodrigues não gosta "particularmente". Porquê ela? "Ela é extraordinária. Para mim, ela tem um lado Marilyn. Há um lado de fragilidade nela que se revela por uma aparente força. Tem um lado de possuída que eu gostava que a Odete tivesse. E acho que é uma pessoa muito táctil. Tem algo que eu gosto nos actores: que se possa sentir os corpos deles. A coisa que primeiro me faz olhar para um actor é o olhar, a maneira de estar física."
Logo, logo se saberá se Odete possuiu a Croisette. "Não gostava que as pessoas vissem o meu filme e dissessem: "Olha, mais um filme.""