Um mexicano divide Cannes, enquanto os pesos-pesados não chegam
Ouviram-se os primeiros apupos no festival, para Batalla en el cielo. Mas a provocação não é o sexo explícito, é o misticismo pretensioso
A procissão ainda vai no adro, mas já há sondagens à porta das salas para quem quiser contribuir com palpites para a Palma de Ouro deste ano no Festival de Cannes. A competição ainda nem vai a meio e tem deixado um estranho gosto de decepção, à excepção do magnífico requiem por Kurt Cobain de Gus Vant Sant, Last Days. Haja esperança: os outros pesos-pesados desta edição - David Cronenberg, Lars Von Trier, Jim Jarmusch, Wim Wenders, Hou Hsiao-Hsien - ainda estão para chegar.A procissão mal tinha começado quando os diários franceses destacaram um dos filmes em competição, dedicando-lhe páginas e adjectivos de admiração. Era inevitável desconfiar, porque soava a campanha em torno de um realizador mexicano, Carlos Reygadas, que há três anos se tornou numa sensação para os críticos franceses. Japón, o seu primeiro filme, exibido então na Quinzena dos Realizadores, notabilizou-se pelo pretensiosismo de uma metafísica à maneira de um Tarkovsky e por uma vontade de testar o espectador com o seu esteticismo de choque. O filme soava a bluff, bem como o coup de foudre dos franceses.
Batalla en el cielo marca o regresso de Carlos Reygadas, 33 anos, a Cannes, agora elevado à competição. Enquanto os irredutíveis gauleses ajoelhavam de novo perante ele, pelos corredores do festival comentava-se que vinha aí um "Brown Bunny mexicano", evocando a recepção polémica de há dois anos ao filme de Vincent Gallo, onde a sequência de um fellatio se arriscou a engolir tudo o resto, filme incluído. Batalla en el cielo começa com uma cena de fellatio que obrigou o seu realizador a vir justificar-se ainda antes do filme ser exibido ontem. "Não filmo o sexo só pelo sexo em si mesmo, mas para mostrar qualquer coisa que se passa durante o acto."
No início desta "batalha", há um homem de uma frontalidade impassiva, um corpo nu e imponente, desafiadoramente anti-glamoroso, como os corpos que Reygadas já filmara em Japón, que são os corpos que ele "adora ver no cinema". Há mais solenidade silenciosa do que crueza na forma como Reygadas filma o fellatio executado por uma jovem - e há um olhar mais romanesco sobre o acto sexual do que em Sangre, primeira obra de Amat Escalante, o verdadeiro filme-choque mexicano do festival, e que não se pode deixar de pensar que, este sim, deveria estar na competição e não na secção Un Certain Regard.
Escalante foi assistente de Reygadas em Batalla... Para lá do que os pode aproximar - um cinema que quer dar visibilidade aos sem-voz, a frontalidade do olhar, o recurso a actores não-profissionais, um sopro documental -, em Escalante impera um realismo cru, uma neutralidade quase brutal, enquanto em Reygadas, mais subjectivo, se nota a tentação de poetizar, dando aos seus filmes uma qualquer caução espiritual. É assim que em Batalla en el cielo se tricota uma história de sexo, religião, luta de classes e crime.
Apupos e um desastre
Não soa melhor quando se descreve a sinopse: o funcionário de um general, meio motorista, meio segurança e pai de família envolve-se com a filha do patrão, que se prostitui secretamente - ele e a mulher raptaram um bebé para pedir um resgate, mas o bebé morre e a filha do patrão aconselha-o a entregar-se à polícia. Enquanto isso, uma procissão de peregrinos vai no adro, com exibições públicas de auto-penitência...
A partir do momento em que Reygadas explicita o paralelismo entre sexo e religião, entre o frémito carnal e uma espiritualidade em potência - há uma cena provocadora que associa a sodomia praticada entre dois corpos de ogre e um quadro de um Cristo deposto da cruz e em êxtase, agarrado por um anjo nas suas costas -, o filme perde-se em maneirismos, desfiando uma mística visual que é superficial.
Quando o filme explode, por fim, deixa-nos frios, explode sem surpresas e com a credibilidade já esgotada. Não admira que, pela primeira vez nesta edição de Cannes, tenha havido apupos para um filme da competição. Mas a presença mais desastrosa na competição cabe ao italiano Marco Tullio Giordana, que realizou Quando sei nato non puoi più nasconderti, centrado no tema da imigração. É bem-intencionado, como o é uma abastada família da Itália do Norte que procura adoptar dois jovens clandestinos da Roménia, mas também é de uma condescendência melodramática confrangedora. A Melhor Juventude foi filmado para televisão e acabou no cinema, a Quando sei nato... augura-se o percurso inverso. K.G., Cannes