Davide Enia em Maggio 43 Histórias de família e guerra
Peça sobre os bombardeamentos de Palermo durante a II Guerra estreia-se hoje
Davide Enia, 31 anos, dramaturgo, adora cozinhar. Sobretudo peixe, nunca doces e de preferência sozinho. Mas com a rádio ligada. E se estiver a fazer pizza, é bom ouvir música do Sul de Itália: assim a massa cresce mais depressa. A grande descoberta da sua vida foi a picadora eléctrica, uma revolução. Ele é lento - se tem de almoçar às 14h, entra na cozinha às 10h - e diz que o mais importante, a "grande dica", é isto: para cozinhar bem é preciso cozinhar com amor.
Davide Enia está em Lisboa para interpretar Maggio 43, peça escrita pelo próprio, que se estreia hoje no Teatro Taborda, em Lisboa (e fica até sábado).
Maggio 43, não tem nada que ver com cozinha: é sobre os bombardeamentos americanos a Palermo durante a II Guerra Mundial, em Maio de 1943, criada a partir de relatos de sobreviventes, inclusivamente familiares do autor, e contada por um miúdo de 12 anos, diz ao PÚBLICO numa conversa traduzida pela dramaturga Letizia Russo.
Davide Enia ainda não escreveu mas é muito provável que vá escrever (não sabe exactamente quando mas é uma encomenda para um grupo italiano) uma peça de teatro sobre cozinha. "Porque é um momento fundamental no dia-a-dia e porque tem a ver com sexo e morte. O acto de cozinhar e de convidar para jantar está ligado ao erotismo e à morte. À morte porque se não se come morre-se e porque cozinhamos seres que matamos."
Para quem desconfie da capacidade do autor em transformar um tema aparentemente não teatralizável numa peça de teatro pode ler Itália-Brasil 3-2, que foi interpretada por José Airosa no Taborda em 2004 - uma telecrónica "epicómica", como lhe chamaram. Como Itália-Brasil, Maggio 43 põe em cena um narrador. Enia interpreta estas duas peças (tem andado em digressão, quase nunca tem tempo para cozinhar, lamenta), embora diga que não é actor: é um autor que leva os seus textos para o palco.
Voltando à gastronomia: a comida é mesmo importante na sua vida. Numa curta autobiografia escreveu que "gosta especialmente de couscous de peixe" e do "cheiro de manjericão nas mãos".
Mais de 100 entrevistasEnia é lento na cozinha e é lento na escrita, diz. Para escrever Maggio 43, entrevistou mais de cem sobreviventes, que na altura tinham entre 6 e 20 anos. Interessava-lhe os testemunhos sobre a vida quotidiana: "O que se comia, quais eram os cheiros, os sabores, quanto tempo se demorava a ir de um lado para outro e o que significava ver a própria cidade bombardeada e vê-la depois dos bombardeamentos."
A ideia principal da peça é contar uma história da sua família, que se deslocou para uma cidade ao lado de Palermo: um dos familiares ficou e morreu e os outros voltaram atrás para buscar o cadáver e o sepultar na outra aldeia.
Em palco, Enia é um rapaz de 12 anos que vai contando histórias (e interpretando também outras personagens). Cruzam-se três tipos de guerras, conta: a do episódio histórico; a guerra entre os adultos e a guerra pessoal de quem quer entrar no mundo dos mais velhos mas não consegue porque eles não deixam. "É muito importante que o ponto de vista seja de um miúdo de 12 anos porque naquela altura ainda tens um olhar puro sobre as coisas, não se julga. Olhar para um bombardeamento com 12 anos é uma coisa bela e fugir para um refúgio por causa dos alarmes dos bombardeamentos é um divertimento."
Palermo, a cidade onde nasceu e vive ainda hoje, tem os sinais destes bombardeamentos. Passou lá os primeiros 18 anos da sua vida e "como é um período em que se forma a geografia simbólica da mente de um ser humano", foi "crescendo com uma obsessão pelos lugares." Palermo "é a metáfora mais clara dos tempos que vivemos": "Só que uma das coisas que tem a mais é que as suas feridas estão ainda à vista de todos e a cidade ostenta as feridas sem pudor. É uma metáfora porque o nosso tempo histórico é feito de grandes feridas que vemos continuamente." E acrescenta que há "uma imagem muito forte" que guarda na memória: uma coroa de flores de um casamento dentro de uma lixeira. "Significa que existe a merda mas também a possibilidade de flor, é como se estas duas possibilidades, contraditórias, contracenassem sempre."
Depois de escrever a próxima peça, o também autor de Scanna (com nove personagens, nenhuma interpretada por ele), diz que não sabe se vai continuar no teatro porque a narração acabou: ao tornar-se um género, passou a ser confortante. E ele não gosta desse conforto.