Colecção única no mundo de cafeeiros e fungos precisa de dinheiro e novo rumo
O centro debate-se com falta de pessoal, estufas envelhecidas e a necessidade de rentabilizar os resultados científicos
Através de paredes envidraçadas, o sol de Oeiras chega a milhares de cafeeiros vindos de muitas partes do mundo. As plantas de café vivem em vasos de barro, arrumados meticulosamente em filas, na humidade abafada das estufas construídas há 50 anos, tantos quantos celebra hoje o Centro de Investigação de Ferrugens do Cafeeiro (CIFC). Mas se estas estufas contribuíram para grandes avanços científicos na cultura do café em todo o mundo, também carregam as cicatrizes de meio século. Por isso Vítor Várzea, engenheiro agrónomo do centro, previne antes de entrar nas estufas: "Está tudo velho."Essa é uma das dificuldades com que se confronta o centro. "As estufas estão parcialmente degradadas porque não receberam obras de fundo nestes 50 anos", conta Vítor Várzea, que trabalha ali há 21 anos. Aquelas são ainda as estufas originais pagas com dinheiro dos Estados Unidos, um país ligado à criação deste centro, por mais estranho que isso agora possa parecer.
A terrível praga do Sri Lanka
Mas esta história começou em Agosto de 1951, com a ida de Branquinho de Oliveira, engenheiro agrónomo da Estação Nacional Agronómica, a São Tomé e Príncipe para estudar viroses no cacaueiro. Apercebeu-se, no entanto, dos enormes estragos causados nos cafeeiros por uma das suas principais doenças, a ferrugem alaranjada. "Ficou impressionado. Nunca tinha visto a ferrugem do cafeeiro", lembra Vítor Várzea.
Começou então a fazer os primeiros estudos sobre esta doença, na Estação Agronómica Nacional, na altura em Sacavém, onde era chefe do Departamento de Fitopatologia, e recebeu sementes e plantas de cafeeiro de São Tomé e Príncipe e de outras origens.
No ano seguinte, passaram por Portugal dois cientistas norte-americanos, Frederick Wellman e William Cowgill, que tinham sido incumbidos de fazer uma volta ao mundo para obter informações sobre o fungo culpado pela ferrugem alaranjada. Esta doença ainda não tinha chegado ao continente americano, onde ficam os maiores produtores mundiais de café, mas os EUA receavam que, se isso acontecesse, pudesse causar distúrbios idênticos aos ocorridos no actual Sri Lanka, onde a doença chegou em 1868.
Dizimados os cafezais do Ceilão, seguiu-se o caos: "Teve um impacto social e económico terrível. Houve bancos que foram à bancarrota e empresas que faliram. A seguir, a ferrugem alaranjada invadiu outros países", conta Vítor Várzea. "Os Estados Unidos receavam que causasse problemas sócio-económicos na América Central e do Sul."
A ajuda americanaAntes de se aventurarem pelo mundo, os cientistas norte-americanos viram que Branquinho de Oliveira já tinha amostras da ferrugem e de cafeeiros e estava a procurar plantas que resistissem à doença. "Comprometeram-se com ele a colher material de plantas com resistência e amostras de ferrugens pelos sítios por onde passassem", relata Vítor Várzea, acrescentando que os dois cientistas sensibilizaram o Governo dos Estados Unidos a apoiar a criação do centro em Portugal, para estudar formas de travar a entrada da doença no continente americano.
Os dois países assinaram um acordo em 1955, segundo o qual os EUA contribuíam com 116.600 dólares, e nasceu o centro, dirigido por Branquinho de Oliveira até 1973. "O acordo trouxe dinheiro para as estufas", diz Vítor Várzea. "A partir daí, o centro foi subsidiado pelo Governo português."
Pode perguntar-se por que razão existe uma instituição dedicada ao estudo das doenças do cafeeiro num país não produtor de café como Portugal. Não só naquela época se produzia café nas ex-colónias (Angola chegou a ser o terceiro maior produtor de café mundial), como o facto de estar fora das zonas produtoras o tornava ideal para evitar contaminações. "O objectivo era centralizar os estudos num país onde não houvesse o problema de introduzir agentes patogénicos que atacam o café."
Sem receios, Portugal podia receber amostras de ferrugem alaranjada enviadas pelos países cafeicultores, até porque o fungo não ataca outras plantas. Mesmo que esses países desenvolvam plantas resistentes, não podem inoculá-las com o fungo para ver até que ponto resistem.
A maior mancha de café da Europa
O resultado espalha-se por cinco mil metros quadrados de estufas. Vítor Várzea gosta de pôr a coisa nestes termos: "Esta é a maior mancha de café da Europa."
Ao longo de 50 anos, o CFIC tornou-se um centro de cooperação internacional, com mais de 40 países cafeicultores. Vai recebendo ferrugens e plantas, que testa para descobrir as mais fortes. "É um centro único no mundo", diz Vítor Várzea sem rodeios.
Uma das razões para a singularidade assenta nas amostras de ferrugem, mais de três mil, que permitiram caracterizar 45 estirpes do fungo, com base na sua virulência.
Ora, com esta colecção de 45 estirpes - que não existem todas num único país mas que, no centro de Oeiras, estão confinadas no mesmo frigorífico em cápsulas de gelatina numeradas - podem-se testar cafeeiros vindos de todo o lado, para determinar o seu nível de resistência. "Como temos uma colecção de ferrugens única no mundo, conseguimos arranjar plantas com um amplo espectro de resistência a essas amostras."
Outra singularidade a nível mundial é a existência de uma colecção de cafeeiros com diferentes estratégias genéticas de resistência ao fungo. Estão identificados 40 grupos de cafeeiros com diferentes espectros de resistência. Desses, os investigadores costumam utilizar 18 para caracterizar a virulência das amostras de fungos vindas de um determinado local. Consoante a virulência, os países escolhem as plantas que vão usar em programas de melhoramento.
"Colecções de plantas caracterizadas com diferentes espectros de resistência não existem noutros países. Existem as plantas, mas não sabemos qual é o espectro de resistência", sublinha Vítor Várzea.
Por aqui se depreende que nas estufas a vida dos cafeeiros nem sempre é fácil. As plantas estão ali para serem infectadas de propósito, na sala de inoculação. Travam-se lutas para ver quem é mais forte, a planta, ou o fungo. Só a Colômbia envia mais de 20 mil plantas para serem testadas todos os anos. Outros países enviam sementes, em quantidades muito inferiores.
Estufas precisam de ser substituídas
O que se passa nestas estufas é o que vai ver hoje o ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, José Mariano Gago, na cerimónia de comemoração dos 50 anos. O ar velho não deverá passar-lhe despercebido, até porque é ao seu ministério que compete a tutela do Instituto de Investigação Científica Tropical, um laboratório de investigação do Estado ao qual pertence o Centro de Investigação das Ferrugens do Cafeeiro.
Por estarem envelhecidas, as estufas consomem em energia mais de 40 mil euros por ano, diz o economista Jorge Braga de Macedo, presidente do Instituto de Investigação Científica Tropical. "As estufas têm de ser substituídas, até para se poupar energia. É preciso um investimento de 700 mil euros", refere Braga de Macedo, que também está preocupado com a "falta dramática" de pessoal.
Trabalham ali 22 funcionários, incluindo oito investigadores. "Estamos deficitários em técnicos e pessoal auxiliar, que faça trabalho de rotina e assegure a manutenção das infra-estruturas, nomeadamente das estufas", relata Vítor Várzea. "Quem trata das plantas?"