Torne-se perito

A odisseia de Catimor, uma planta cuja história começa em Timor

Descoberta de cafeeiro resistente à
ferrugem alaranjada, nos anos 50, é
exemplo de falta de valorização comercial da ciência

De Timor para Portugal, e depois para o resto do mundo. Em traços largos, este foi o percurso de uma planta de café que começou nos anos 50 e mudou a produção de café para sempre. Portugal ofereceu-a gratuitamente a mais de 40 países. A sua descoberta, uma das principais avanços na cafeicultura mundial, porque resistia a uma doença que afecta o cafeeiro. Deu origem a variedades de cafeeiros patenteadas em nome de diversos países, sem que Portugal visse daí qualquer retorno comercial. Não se sabe ao certo quando surgiu essa planta. Os relatos são desencontrados: certos investigadores indicam em 1917 ou 1918, outros falam de 1927 e outros ainda de 1957.
O que se sabe é que no meio de uma plantação de Timor devastada pela ferrugem alaranjada sobressaía um pé de cafeeiro completamente resistente à doença. Apresentava uma mistura de características entre o cafeeiro robusta (Coffea Canephora), resistente à ferrugem, e o arábica (Coffea Arabica), susceptível à ferrugem. Pensa-se que as duas espécies, as que têm maior valor económico, se cruzaram espontaneamente na natureza, e por isso a planta resultante ficou conhecida como híbrido de Timor.
Em 1957, o Centro de Investigação de Ferrugens do Cafeeiro (CIFC), em Oeiras, recebeu um pacote de sementes, as primeiras, do híbrido de Timor, enviado por agrónomos portugueses. Apesar da resistência, o híbrido de Timor produz pouco café e é um arbusto alto demais, por isso os investigadores do CIFC fizeram duas coisas. Enviaram sementes do híbrido de Timor para os países cafeicultores e cruzaram-no no centro com variedades comerciais mais produtivas mas, também, mais susceptíveis à doença.
De um desses cruzamentos, com a variedade Caturra, resultou a variedade Catimor. Com boas características comerciais, era resistente a todas as estirpes do fungo.
O centro ofereceu sementes de Catimor a mais de 40 países cafeicultores para ensaios de adaptação, multiplicação de sementes e programas de melhoramento. Outra das variedades comerciais com as quais o híbrido de Timor foi cruzado foi com Villa Sarchi, da Costa Rica, e daí resultou o Sarchimor.

Patentes na Colômbia e no Brasil
"O Catimor e o Sarchimor são variedades muito disseminadas. Foram cruzadas aqui e seleccionadas nos países", diz Vítor Várzea, do CIFC.
Para a Colômbia, o centro português enviou sementes do híbrido de Timor em 1960. Aquele país cruzou-o também com o Caturra e daí derivou uma variedade nova baptizada Colômbia. Nessa época, o continente americano ainda não tinha sido atingido pela ferrugem alaranjada, mas a Colômbia queria estar preparada para esse dia.
"Quando a ferrugem chegou à Colômbia em 1982, tinham criado a variedade Colômbia baseada no que fizemos aqui. É um caso único no mundo de uma variedade resistente criada na ausência do agente patogénico", conta Vítor Várzea.
Do contacto entre o CIFC e a Colômbia, aí através do Centro Nacional de Investigações do Café, resultaria uma longa colaboração, que se mantém até hoje. Em Oeiras começou a testar-se com ferrugem o material que ia sendo produzido, para ver a sua resistência.
O Brasil, o maior produtor mundial de café, secundado pela Colômbia, num mercado mundial que movimenta por ano 91 mil milhões de dólares, não ficou parado. Utilizou o Catimor enviado por Portugal para a Universidade Federal de Viçosa (Minas Gerais) para criar novas variedades, que foram patenteadas. "Lançaram uma meia dúzia de variedades a partir do material enviado para lá."
Como agradecimento ao CIFC pelo apoio dado ao Brasil desde 1973, em 1999 a universidade e a Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais baptizaram uma variedade de café com o nome Oeiras. Mas é tudo. "Nunca patenteámos o Catimor", afirma Vítor Várzea.
Há cerca de dois anos, disseram-lhe no Brasil como é que Portugal poderia ter direito a algum retorno financeiro sobre essas novas variedades: "À partida, tinha de ter ficado escrito que tudo o que saísse da colaboração também ficava na patente. Nessa altura, o CIFC não estava preocupado com isso."
No entanto, as instituições que receberam o Catimor não deixaram escapar as novas variedades encontradas a partir dele e registaram-nas. "A maioria foi registada como variedades dessas instituições. Só dizem que o Catimor foi oferecido por Portugal", refere Vítor Várzea.
"A utilização do híbrido de Timor na produção de híbridos como Catimor, Sarchimor e a variedade Colômbia, em larga expansão pelo mundo, alterou decisivamente toda a anterior de filosofia de combate à doença com fungicidas", frisam os autores, entre os quais Vítor Várzea, de um artigo publicado na Revista das Ciências Agrárias.
Para se perceber o papel do centro português a nível mundial, Vítor Várzea diz: "Mais de 90 por das variedades comerciais de cafeeiro resistentes à ferrugem foram criadas directa ou indirectamente através de estudos realizados no CIFC."
Não só o centro, que estuda outras doenças do cafeeiro, não patenteou o Catimor como não tem nenhuma patente em geral: "Não tem nada. Tem o prestígio, tem uma homenagem com uma variedade com o nome Oeiras. É uma coisa simbólica", diz Vítor Várzea.
Por agora, Jorge Braga de Macedo, presidente do Instituto de Investigação Científica Tropical, onde se insere o CIFC, não descarta a possibilidade de se patentear algo que surja do trabalho do centro: "A evolução do CIFC vai nessa direcção. Temos de manter a excelência. A partir do momento em que temos qualquer coisa patenteável temos de a patentear."
Para já, o caminho preferencial é o de manter o espírito de ajuda ao desenvolvimento dos países com que foi criado o CIFC. "Foi criado para ajudar o mundo cafeicultor. Foi a mentalidade de entreajuda que ficou. Os países pobres não têm dinheiro para nos pagar", refere Vítor Várzea, que não deixa de reconhecer a necessidade de valorizar comercialmente os resultados ali obtidos.
Depois de dar a volta ao mundo, de ser cruzado e voltado a cruzar para que tenha as características desejadas pelos humanos, como evoluiu o híbrido de Timor em Timor? Desde o 25 de Abril que nenhum investigador do CIFC lá foi, mas as sementes que receberam da Missão Agrícola Portuguesa em Timor-Leste, estabelecida ali desde 2000, e que tem o estudo do café entre as prioridades, não revelaram nada de especial. "Não mostraram nada de superior ao que temos."

Sugerir correcção