A mal-amada Constituição de 1976
Nos cortejos cívicos da Revolução Francesa, a Constituição, objecto sagrado da nova ordem laica, seguia, protegida pelo pálio, no lugar ocupado, nas procissões religiosas, pelo Santíssimo Sacramento. A Constituição portuguesa de 1976, ao longo dos 30 anos da sua vigência, possuiu igualmente visibilidade estratégica. Se não a colocaram propriamente no de lugar de Deus, concederam-lhe o privilégio de ficar nas encruzilhadas do Diabo. Qualquer jovem de hoje terá dificuldade em imaginar que a Constituição, presentemente detestada por várias famílias de direita, foi, ainda em plena elaboração, o alvo preferencial de várias esquerdas revolucionárias. A Assembleia Constituinte foi submetida, com a aquiescência do poder político-militar, a uma permanente contestação que passou pela censura nos media, pelo apoucamento do estatuto dos deputados, pela sátira na canção popular e no desenho de imprensa.
A testemunhar a censura à Constituinte está a pobreza do arquivo de imagens da televisão, em que os debates de S. Bento, situados entre os mais acesos e dramáticos da história parlamentar portuguesa, se encontram reduzidos à expressão mínima. Os relatos de imprensa eram, por via de regra, pobres e reduzidos. As palavras dos constituintes ecoavam apenas no interior do hemiciclo.
Sob tutela militar-revolucionária - Apesar da radicalização gerada pelo 11 de Março de 1975, os órgãos de poder militar emanados da Revolução de 1974, graças à pressão internacional, ao contrapeso dos militares moderados e à influência do Presidente da República, Costa Gomes, garantiram a realização das eleições no preciso dia 25 de Abril de 1975. O principal objectivo estratégico dos partidos defensores da democracia liberal era assegurar que se realizassem eleições, capazes de fazer com que a legitimidade democrática dos órgãos eleitos por sufrágio universal ombreasse com o poder revolucionário-militar. Dois pactos entre o MFA e os partidos políticos limitaram a margem de decisão dos deputados. O primeiro foi celebrado na sequência do 11 de Março (13 de Abril de 1975) e obrigava indirectamente a Constituinte a conceder poderes decisivos aos órgãos militares. Esta subordinação da legitimidade eleitoral à legitimidade revolucionária foi atenuada com o segundo Pacto MFA partidos, efectuado após a nova relação de forças estabelecida após o 25 de Novembro. Até à revisão constitucional de 1982, manteve-se o Conselho da Revolução, enquanto órgão de fiscalização da constitucionalidade das leis e de consulta do presidente da República.
A vontade de circunscrever e limitar o poder da Constituinte era tão forte que, na discussão do regulamento, os comunistas e os seus aliados se opuseram à existência do período de antes da ordem do dia, destinado ao debate das questões de actualidade política, consideradas de interesse para a Assembleia. Em plena efervescência política do Verão quente, a "hora prévia" permitiu o debate de inúmeras questões relacionadas com a luta política em curso, conferindo, desde logo, à Constituinte a natureza parlamentar que as correntes revolucionárias pretendiam evitar.
Em discurso proferido no célebre comício do PS da Alameda D. Afonso Henriques, a 19 de Julho de 1975, Francisco Salgado Zenha denunciava a situação existente em que o estatuto dos deputados se encontrava ainda por definir pelo Governo de Vasco Gonçalves, embora os trabalhos da Constituinte se tivessem iniciado há mais de um mês: "A Assembleia Constituinte iniciou os seus trabalhos no dia 2 de Junho, tem estado em trabalho permanente, tem sido atacada constantemente, injuriada e insultada, por todos e até por aqueles de quem menos se deveria esperar esses ataques e essas injúrias. Mais do que isso: o Sr. Primeiro-ministro e o Governo ainda não tiveram tempo para publicar o decreto a estabelecer a remuneração para os representantes do povo português". Aparentemente menor e ridícula, ou talvez por isso mesmo, esta questão ilustra bem o ambiente negativo gerado em torno da Constituinte.
O ataque mais violento à elaboração da Constituição foi o "cerco à Assembleia Constituinte" por uma manifestação de operários da construção civil. Os deputados ficaram impossibilitados de sair do Palácio de S. Bento, só tendo conseguido fazê-lona manhã do dia seguinte, sob as ameaças e os apupos dos manifestantes, à excepção dos comunistas, vitoriados pelos sitiantes. Alguém terá imaginado o "remake" do assalto ao Palácio de Inverno na Revolução Russa de 1917. O ícone ficou inscrito na história da democracia portuguesa, enquanto episódio recuperado do museu das revoluções.
"Sob reserva mental" - Ao analisar a "Constituição económica" - marcada pela divergências entre uma gama de projectos diversificados, desde os mais colectivistas àqueles em que se defendia o lugar do mercado e da livre iniciativa - Sousa Franco descortinou, na elaboração do diploma, a articulação entre "constituição receptiva da ordem pré-constitucional" e "constituição compromissória entre as forças na Assembleia Constitucional". O resultado foi que o modelo constitucional ficou marcado por um "compromisso" caracterizado pela "instabilidade" e pela "coexistência" (e não pela "convergência") em que as diversas forças procuraram definir, sobretudo, "espaços de manobra", em que, por vezes, estava presente aquilo que o jurista definia como "espaço de reserva mental". Num dos extremos, a "reserva mental" dos que visam avançar rumo a um regime de "democracia popular", no outro pólo, as intenções reservadas dos que, favorecidos pelo situação estratégica do País, aguardavam as circunstâncias propícias a uma "democracia liberal". Esta complexa génese originou, no dizer de Sousa Franco, um diploma jurídico "predestinado a uma vida acidentada", caracterizada por múltiplas revisões,.
A partir de 1976, contudo, serão os antigos detractores da Constituinte - os comunistas e a extrema-esquerda - a invocar constantemente o diploma constitucional, enquanto as correntes políticas mais à direita passaram a encontrar na Constituição o alibi para alguns insucessos políticos, em especial ao longo da década de 80.
Os amigos e inimigos da Constituição mudaram, mas o diploma fundador da democracia permaneceu no centro de vários fogos cruzados. Apesar de construída com base na resistência a circunstâncias adversas, que bem poderiam facilitar a sua "sagração", o discurso político dominante - primeiro à esquerda e, depois, à direita - transformou a Constituição em permanente "bode expiatório" do regime.
Sucessivas revisões constitucionais estabeleceram a subordinação das Forças Armadas aos órgãos de soberania eleitos, extinguiram o Conselho da Revolução, "laminaram" as disposições destinadas a inspirar o rumo para a "sociedade sem classes" (ainda inscrito no prólogo, mas reduzido à condição de resíduo histórico...) ou para quaisquer projectos de economia planificada ou estatizante.
Noutra perspectiva, o diploma constitucional em vigor, apesar de profundamente alterado, ainda conserva a ligação à matriz histórica da Constituição elaborada na sequência da Revolução de 25 de Abril. Se a Constituição económica e social, que remetia para um regime socializante, foi fortemente modificada, em função da adesão de Portugal à UE, a carta de liberdades cívicas e de direitos económicos e sociais permaneceu fiel ao espírito fundador dos constituintes de 1975-76.
Apesar dos limites ao poderes presidenciais, introduzidos em 1982, o diploma constitucional permanece fiel à arquitectura constitucional do regime semipresidencial que, no dizer o investigador Kenneth Maxwell, visava evitar "o duplo legado da história portuguesa do século XX : a experiência de um sistema parlamentar fraco e instável, que surgira com a Constituição de 1911, e a lembrança de um sistema antidemocrático, autoritário e excessivamente centralizado, que fora estabelecido pela Constituição de 1933".
O texto constitucional transformou-se profundamente em relação ao diploma aprovado há trinta anos. Talvez não seja gratuita a questão de saber se esta ainda é a Constituição de 1976. Observada na perspectiva da teoria constitucional, será possível afirmar que, permanecendo formalmente a mesma, talvez seja materialmente outra. Mas, no plano simbólico e histórico, a designá-la por Constituição de 1976 assinala a ligação à matriz fundadora do regime democrático e à queda do salazarismo. Com todas as imperfeições, provenientes do contexto de luta política em que foi elaborada, a Constituição de 1976 inscreve-se no prolongamento da ruptura introduzida pela Revolução do 25 de Abril, corrigida e redimensionada pela opção europeia de Portugal.