Face ao complexo do "complexo anti-espanhol"
Actualmente, a propósito de qualquer análise sobre as relações entre Portugal e Espanha que uma pessoa arrisque abordar, não se regozijando com a atitude do nosso vizinho, mas culpando-o por nos ter prejudicado, é muito "politicamente correcto" acusá-la de ter o "complexo anti-espanhol", ou seja, de ver na Espanha a principal razão das nossas dificuldades. São modas... O politicamente correcto aconselha, igualmente, a dizer mal dos americanos, em quaisquer circunstâncias...Existem comentadores que não resistem a navegar nesta onda. Para eles, é premissa indiscutível que os nossos vizinhos são sagazes e activos, ao mesmo tempo que solidários e bondosos, portanto incapazes de defender os seus interesses com prejuízo dos nossos. Pelo contrário, os portugueses são uns mal agradecidos que, ainda por cima, dizem mal de quem estaria sempre preocupado em ajudá-los.
A simples ameaça de ganhar o rótulo de ter o "complexo anti-espanhol", repercute-se de várias formas nos portugueses: silêncio envergonhado sobre o nosso relacionamento peninsular, radicado num indefinido sentimento de culpa; atitude permanentemente masoquista, a propósito de tudo que respeite às questões que afectem simultaneamente Portugal e Espanha; ou mesmo um complexo de inferioridade face aos espanhóis, com a predisposição de ceder à sua vontade, certamente mais sábia (?) e mais útil (?) aos nossos interesses que a nossa...
Por vezes, este comportamento tem origem em motivos genuínos de quem pensa que um único espaço político estatal alargado ao todo peninsular melhoraria o bem-estar dos portugueses, ou então que nos seria benéfico serem outros a governar-nos, em vez de nós próprios. Em outras ocasiões, trata-se simplesmente de fraqueza e falta de coragem. Frequentemente, tem por justificação a barragem de acusações a que se sujeita quem tenha a "triste" ideia de acusar os espanhóis de alguma coisa, por mínima que seja. Isto conduziu a outro complexo, actualmente bem mais dominante do que o "complexo anti-espanhol" - o complexo do "complexo anti-espanhol".
É claro que este complexo, incentivado pelos espanhóis sempre que exista oportunidade, é muito vantajoso para os empresários do país vizinho e para certos empresários portugueses também beneficiados, assim como para a direcção política espanhola em funções, cuja postura não se altera significativamente com mudanças de governo: estilo mais soft com os socialistas e mais hard com os populares. É curioso assistir à forma como reage alguma imprensa do país vizinho, quando existe algum clamor público em Portugal, à volta de queixas com o comportamento do seu governo ou de alguma sua empresa.
Entre responsáveis portugueses, são inúmeros os exemplos deste complexo. Tanto nas relações de natureza política, como nas económicas e até nas culturais.
Tem sido comum o governo português fingir que não existem problemas. O caso de Olivença é paradigmático. Sempre que alguém ousa levantá-lo, como a Assembleia da República, legalmente forçada a pronunciar-se na sequência de uma petição que lhe foi apresentada, o governo assobia para o lado, fazendo de conta que o assunto não é com ele.
Ora, Olivença é um potencial foco de tensão entre os dois Estados ibéricos. Qualquer líder populista com aceitação pública pode usar este assunto para incendiar os ânimos. Aliás, um prestigiado diplomata espanhol retirado já insinuou esta hipótese, quando afirmou a necessidade de coerência por parte de Espanha, em relação a Gibraltar, Olivença e à situação de Ceuta e Melilla. Embora a cada um destes casos correspondam níveis bem diferente de preocupação e de intensidade conflitual.
Existem outros exemplos políticos, alguns dos quais verdadeiramente lesivos do interesse nacional português. Como o posicionamento de Portugal nas sucessivas negociações, a propósito do caminho-de-ferro de elevada velocidade: nós, aparentemente, predispostos a ceder, apresentando posições de compromisso logo nas primeiras propostas; os vizinhos com posições iniciais fortes, como se fossem factos consumados.
Ou na condescendência da participação na última cimeira ibérica das lideranças políticas das regiões autónomas espanholas fronteiriças, criando a imagem de que Portugal se rebaixava a este nível. É certo existirem temas que aquelas regiões precisam de negociar com a sua contraparte portuguesa. Mas este problema tem outra solução - criar urgentemente regiões administrativas, em Portugal, com base nas regiões de coordenação e desenvolvimento regional, por um lado, e estabelecer reuniões periódicas entre as regiões económicas existentes no conjunto peninsular (todas as espanholas, os Açores, a Madeira e o continente português, este representado por um ministro de Estado coordenador, como região económica), onde se tratariam assuntos de ordenamento do território, comércio, turismo, etc., que fossem da sua competência.
A cimeira política manter-se-ia no modelo tradicional - apenas com os governos de Portugal e Espanha, afim de debaterem os problemas que lhes correspondem, com a autoridade soberana que detêm. Cada um procurando, naturalmente, o reforço dos seus interesses, no sentido do aumento do bem-estar e segurança dos respectivos povos, como é sua função. Isto não obsta que, a título de assessoria e não como participantes políticos, elementos de algumas regiões (de Espanha e de Portugal) apoiem os líderes dos Estados, em pontos específicos da agenda.
Também no plano económico têm sido visíveis comportamentos timoratos e atitudes de lamento e/ou submissão, em relação a interesses económicos espanhóis. Se é certo que o lucro é um objectivo central de qualquer actividade económica, não é menos certo que ele, além de não ser o único, pode ser procurado com uma visão que considere o interesse nacional, a exemplo do que fazem alguns dos nossos mais reputados e eficientes empresários.
Estão a surgir indícios de que esta onda do politicamente correcto está a mudar. No respeitante ao complexo do "complexo anti-espanhol", parece que a profunda crise económica que o país atravessa está a despertar forças inusitadas no sentido de o limitar, senão eliminar. Passando o discurso e a acção a basear-se apenas no interesse de Portugal, mesmo que ele seja visto e proclamado pelos nossos vizinhos como prejudicial ao interesse de Espanha. É assim que os espanhóis procedem connosco.
Teremos de ter consciência de que, em termos de relações internacionais, Portugal e Espanha estarão juntos na maior parte das vezes. Mas, possivelmente outras tantas, encontrar-se-ão em lados diferentes, na defesa dos respectivos interesses, no intenso quadro competitivo de uma península económica e até culturalmente multilateral, de uma União Europeia a expandir-se e a ser progressivamente mais exigente, e de uma organização mundial do comércio onde aumentam os produtores com vantagens comparativas superiores às nossas.
Entre os sinais, refiro a crescente abordagem objectiva, sem "complexo do complexo", de problemas que se colocam aos dois vizinhos ibéricos. Tanto por jornalistas, como por comentadores, empresários e economistas.
Mas o mais significativo, a manter-se o rumo iniciado, sem exageros continentalistas desequilibrados com posições atlantistas indispensáveis para nós (América do Norte, América do Sul e África são áreas vitais na nossa política externa), é o sinal político transmitido pelas recentes viagens a Espanha do Presidente da República e do primeiro-ministro de Portugal.
Foi possível ver firmeza, acção dinâmica e ofensiva, juntamente com a habilidade diplomática e a cortesia adequadas a vizinhos, aliados e amigos. E não uma posição defensiva, estática e apenas reactiva. Duas das declarações de Sócrates ao El País sintetizam a linha de rumo que nos é conveniente. Por um lado, Espanha é a nossa primeira prioridade em política externa, o que é uma verdade que a História confirma exaustivamente. Sendo a Espanha o nosso primeiro problema e maior preocupação, seria muito estranho que não fosse a primeira prioridade. Por outro lado, foi dito claramente aquilo que há muito deveria ter sido dito pelo primeiro-ministro (já tinha sido afirmado pelo PR): "o que queremos é que o mercado espanhol se abra da mesma maneira" que o nosso se tem aberto. General