Combater o relativismo é assumir a modernidade e recusar a pós-modernidade
É fundamental defender que "há estruturas gerais de humanidade que nos permitem ser Humanidade e que se desistirmos de chegar lá estará tudo perdido", defende D. Manuel Clemente, que também explica como ser contra a utilização do preservativo visto como solução para o problema da pandemia da sida não impede que, face a determinadas circunstâncias concretas, os cristão informados actuem de acordo com a sua consciência.Há quem critique a homília antes do Conclave descrevendo-a como uma manifestação de fundamentalismo por oposição à modernidade...
O que é curioso, pois o que nessa homília se contraria é a pós-modernidade. A modernidade quando se afirma, nos séculos XVI e XVII, e sobretudo depois do século XVIII, apresenta-se não como relativismo mas como fixação. Mais ideológica, mais de raiz científica, mas como fixação. Ora quando João Paulo II publicou a Veritatis Splendor, onde apelava precisamente à racionalidade, a bases estáveis, um autor não cristão, Jean Daniel, elogiou-o como alguém que ainda acreditava na razão, existindo na racionalidade uma base comum. Ora o relativo não é moderno, é pós-moderno, é a factura que se está a pagar às grandes desilusões do século XX relativamente a certos desígnios.
Quando Bento XVI se refere ao relativismo refere-se aos que recusam valores morais comuns, aos que defendem que todos os comportamentos morais são igualmente válidos, o que contraria a doutrina da Igreja. A doutrina da Igreja não terá de evoluir nestes domínios?
Isso não é apenas uma questão da Igreja. Bento XVI - como João Paulo II - quando discute estes temas não o faz com base na religiosidade mas com base numa racionalidade comum. Aquilo em que acredita, e por isso é mais moderno do que os pós-modernos - é que o mundo, a vida, são entendíveis numa base que ultrapassa muito o subjectivismo da sensibilidade ou da circunstância. Há estruturas gerais de humanidade que nos permitem ser Humanidade e que se desistirmos de chegar lá estará tudo perdido.
Mas o que é difícil de entender nas sociedades modernas são algumas posições da Igreja, designadamente a sua oposição à utilização do preservativo quando este pode ser, nomeadamente em África, uma forma de combater a pandemia da sida. Isso não desafia a racionalidade?
Do lado da Igreja julgo que todo o empenho deve ser colocado na pedagogia e do lado dos que criticam deve haver o cuidado de ler bem os textos e olhar para os fundamentos do que se defende. O fundamental da doutrina nesse caso diz-nos que não devemos tomar como panaceia universal o que no fundo é um expediente. Este é que é o problema: perceber se é com o preservativo que resolve o problema da pandemia. A Igreja preza muito uma consciência bem informada que tenha capacidade de decisão, e nesse santuário da consciência a Igreja não se mete, mas não pode prescindir de dar à consciência de cada um todos os elementos da questão, até em nome da Humanidade total que a Igreja defende. Por isso uma coisa é dizer-se que o preservativo é a solução da pandemia, outra bem diferente admitir que, face a uma situação concreta, pesadas as circunstâncias, a consciência individual devidamente informada toma a decisão que lhe parecer melhor, é outra coisa. Não se resuma pois a posição da Igreja a um "proíbe": vamos ver antes o que a Igreja propõe.
Havia a expectativa que após João Paulo II se avançasse não só nas questões da moral sexual, mas também na do celibato dos padres, da ordenação das mulheres, etc. Essas expectativas foram defraudadas?
Antes de responder gostava de sublinhar como a nossa cultura vive e se alimenta de expectativas, enquanto outras culturas preferem, por exemplo, a segurança. Agora em relação do futuro, há um ponto que julgo importante: tanto como observamos no devir histórico de uma instituição tão antiga como a Igreja, são geralmente os homens que estão muito dentro da tradição, que conhecem muito bem todos os elementos que estão em causa, os que se sentem seguros para avançar. Quem não está tão seguro da tradição e se vê perante uma responsabilidade destas, tem mais dificuldade em dar qualquer passo.
Quer então dizer que alguém com uma formação teológica tão forte como Bento XVI está em melhores condições para introduzir mudanças?
Eventualmente. Conhece todos os dados dos problemas, sabe em relação a cada ponto o que é essencial manter, porque representa um veio profundo dessa tradição, e sabe o que é mais episódico ou circunstancial. Não tem o bloqueamento de quem não domina bem todos os assuntos. Se for sensível, humano, e tudo leva a crer que é, o facto de não só conhecer a doutrina como as pessoas, torna-o mais capacitado para dar os passos que forem necessários.
Não está limitado por ter sido o braço direito de João Paulo II?
Ele diz o contrário. Na homília logo depois do conclave - que é uma homília muito importante porque é a primeira, a mais espontânea, que constitui um texto precioso - disse que João Paulo II deixou a Igreja mais corajosa, mais livre e mais jovem. É muito interessante esta definição.