Limitação de mandatos
1.A limitação do tempo de exercício de qualquer cargo político assenta em vários fundamentos.Decorre do princípio republicano como expressão qualificada de democracia, que exige não só o banimento da hereditariedade mas também o acesso do maior número possível de cidadãos, por igual, a esses cargos ao longo dos anos.
Decorre do princípio do Estado de direito, que exige salvaguardas contra a personalização, a concentração e, não raro, o abuso do poder em que tendem a cair, como a experiência demonstra, aqueles que se vão perpetuando nos mesmos cargos.
Decorre ainda de um imperativo de garantia de liberdade dos próprios titulares dos cargos, porque a necessidade de, ao fim de certos anos ou de certo número de mandatos, regressarem à vida privada (ou, eventualmente, concorrerem a outros cargos) impede ou atenua o carreirismo e a dependência dos aparelhos partidários ou de quaisquer outros aparelhos ou interesses.
Enfim, liga-se à conveniência de renovação da classe política, de constante abertura à sociedade civil e de estímulo à participação de profissionais qualificados.
Objectar-se-á talvez que, assim, se limita a própria democracia, por se impedir o povo de, querendo, manter no poder aqueles em quem confia. Sim, limita a democracia, mas a democracia em Estado de direito, a democracia pluralista e representativa do Ocidente, é sempre uma democracia limitada.
O povo não pode querer tudo como o rei em monarquia absoluta. E, de resto, conhecem-se bem os constrangimentos de vária ordem - mormente a nível regional e local (onde o poder é mais individualizado e próximo das pessoas) - que os detentores actuais de cargos projectam sobre os eleitores.
Não é por acaso que o problema se tem posto um pouco por toda a parte e com resposta constitucional adequada, com relevo para os Estados Unidos, para a América Latina e para alguns países europeus.
2. Por tudo isto, no projecto da Constituição que publiquei em Abril de 1975 (há 30 anos já!) todas estas ideias estavam consagradas (art. 259.º e 260.º) e na Assembleia Constituinte, em 1976, propus e foram aprovados dois preceitos da maior importância: o art. 121.º, hoje 118.º, com a epígrafe de princípio de renovação, vedando o exercício de qualquer cargo político a título vitalício; e o art. 128.º, n.º 1, prescrevendo que não seria admitida a reeleição do Presidente da República para um terceiro mandato consecutivo, nem durante o quinquénio imediatamente subsequente ao termo do segundo mandato consecutivo (ao contrário do que escreveu Mário Mesquita neste jornal, em 17 de Abril, a norma não foi introduzida em 1982, por causa do Presidente Ramalho Eanes).Propus também que, em geral, se dispusesse que ninguém poderia exercer qualquer cargo por períodos sucessivos renováveis indefinidamente. Mas este preceito não foi aprovado pela Constituinte.
3. Apesar da rejeição da proposta apresentada em 1976, continuei a sustentar que em relação aos titulares dos órgãos das regiões autónomas e de autarquias locais - por o seu estatuto não se esgotar na Constituição, ao invés do dos titulares de órgãos políticos de soberania - era possível, e até imperioso, consagrar limites à renovação de mandatos.Isso, ainda, porque na revisão constitucional de 1989 se previram no art. 50.º as inelegibilidades necessárias para garantir a "liberdade de escolha dos eleitores e a isenção e independência do exercício dos respectivos cargos". Mais claro não se poderia ser.
No entanto, lamentavelmente, o Tribunal Constitucional pronunciou-se, em 1991, pela inconstitucionalidade de um diploma aprovado pela Assembleia da República (com maioria do PSD) no sentido da limitação a três mandatos dos presidentes de câmara municipal.
Tal não impediria a subsistência da ideia, reforçada tantas vezes pela observação de formas menos idóneas de exercício dos cargos. E foi-se criando um consenso na opinião pública e entre os principais partidos nesse sentido, no âmbito daquilo a que se chamaria a reforma do sistema político.
4. A revisão constitucional de 2004 eliminaria qualquer dúvida sobre a constitucionalidade de medidas legislativas a respeito de cargos executivos, embora não tivesse avançado, como seria desejável, para os cargos de deputados e não tivesse logo estipulado, à semelhança do que sucede com o Presidente da República (art. 123.º, n.º 1, da Constituição) e com os juízes do Tribunal Constitucional (art. 222.º, n.º 3), quantos mandatos poderiam ser exercidos sucessivamente.Não foi um passo arrojado, porque se devolveu para a lei (art. 118.º, n.º 2) - e lei carecida de dois terços (art. 168.º, n.º 2) - a determinação dos limites de mandatos. Em contrapartida, no seu âmbito cabem quer titulares de órgãos locais, quer os membros dos governos regionais, quer os membros do governo da República, como resulta do lugar do preceito entre os princípios gerais de organização do poder político (pelo que o termo "mandato" utilizado não pode servir de contra-argumento). E, por se tratar de revisão constitucional, a norma só foi aprovada por se conjugarem os votos do PS e do PSD.
5. A proposta de lei agora apresentada pelo Governo, se peca por alguma coisa é por defeito, não por excesso - por não se estender, como a Constituição permite, aos vereadores, aos secretários regionais e aos ministros e secretários de Estado.Nem se figura inconstitucional fazer uma diferenciação entre aqueles que já tenham exercido os mesmos cargos por 12 anos, e que, para futuro, só poderão candidatar-se a mais um mandato, e os que ainda não tenham exercido esses cargos por 12 anos seguidos.
Seria melhor, como sugeriu Marcelo Rebelo de Sousa, que, em vez de 12 anos, fossem oito anos, para se evitarem juízos ad hominem. Contudo, não há retroactividade, porque tudo se passa como se a lei viesse a dizer que, doravante, ninguém poderia exercer mais de dois mandatos consecutivos; ela não se aplica a factos passados, mas sim a situações ainda em curso. Nem se verifica a violação do princípio da igualdade, porque são diversas as situações das pessoas em razão do tempo que levam de exercício do poder. E, de qualquer modo, prevalecem aqui os princípios institucionais dos artigos 50.º e 118.º.
6. Será esta lei que vai resolver os problemas políticos portugueses a nível nacional, regional ou local ou que vai pôr fim, de uma vez por todas, a casos de corrupção, de caciquismo, de populismo autoritário? Ninguém é tão ingénuo que assim pense. E outras medidas legislativas bem poderiam ser adoptadas, designadamente no domínio das incompatibilidades, da proibição de substituição dos deputados durante a legislatura e da fiscalização das contas partidárias.Isto não significa que a lei não seja justa e salutar. É um pequeno passo, repito. Mas é melhor que seja dado do que fique tudo na mesma. E receio bem que aqueles, como António Barreto, que a atacam e não se satisfazem com ela, acabem por, objectivamente, contribuir para que perdurem as situações inadmissíveis que, de resto, não se têm coibido de criticar. Professor universitário